Sentado na varanda, fumando um cigarro de palha, ele ouvia o estrondo do monjolo e pensava consigo mesmo:
_ A natureza, como sempre, está trabalhando a meu favor.
Quando a cerração cobria o povoado ele quebrava o silêncio da escuridão com cantorias melodiosas, se acompanhando pela viola de cocho, que ele mesmo havia fabricado. Era mais ou menos assim a canção:
“Me larga, me larga, me deixa,
que eu vou sair agora;
me larga, me deixa,
chegou a minha hora.
Me larga, me deixa,
que eu tô caindo fora
para encontrar o meu amor.
Se eu não for, ela vai embora."
Não havia eletricidade e nem alto-falantes naquele vilarejo, mas o vento, com seu sopro benfazejo, se incumbia de levar avante aquelas ondas sonoras para todos os cantos, assanhando borboletas, pássaros e gentes.
“Seu” Alexandre Pinto da Silva, para os íntimos “Seu” Xande, cantava o que o povo queria ouvir para esquecer as horas dos dias lentos e das noites frias.
Tive o prazer, quando ainda criança, de ficar frente a frente com ele, assistindo sua “performance” na viola de cocho acompanhado por Zé Siputá, no ganzá e “Seu” João Sobrinho no mocho. Era siriri da largura da boca. No intervalo, tocava rasqueado. Então, os casais se formavam e lotavam os salões. A poeira levantava no chão de terra batida, sob a luz bruxuleante dos lampiões. E, muitas décadas depois, resgatei uma de suas canções, gravando-a em ritmo de rasqueado, nossa música-símbolo:
Engenho novo estremeceu,
garapa é meu, bagaço é seu.
A canoa virou, tornou revirar,
comadre Maria não soube remar.
Dona Dedé, Didi, Dudu,
acende o fogo no tacuru.
Fui chamado à beira do seu leito, por ocasião dos seus últimos dias.
Ele me estendeu suas mãos trêmulas, onde observei escondida nelas, na penumbra do quarto, sua viola de cocho já bem encardida pelo uso havia muitos anos e me disse essas palavras:
_ Ô, Joãozinho, não aguento mais tocar nem cantar. Então, o que restou da minha vida, quero lhe dar de presente, a minha viola de cocho.
A princípio resisti, não me achando merecedor de tamanha honraria. Porém, como sempre fui ligado em música através de minhas tímidas incursões no cavaquinho, aceitei. Ele acrescentou:
_ Ô, Joãozinho, sempre notei que você tem ótimo ouvido para música e com esta viola, você continuará tocando e alegrando nosso povo. Coloquei, assim, a viola no saco de algodoim e levei-a comigo.
Quando a morte calou a voz daquele ilustre violeiro, “Seu” Xande, uma tristeza imorredoura se abateu sobre a serra acima, pois tão cedo não surgiria alguém tão talentoso para preencher tamanha lacuna.
Poderíamos dizer que: das suas roças saíam os grãos; dos seus engenhos a garapa, o melado e a rapadura; do seu monjolo, a farinha, o farelo e a quirera; da sua viola, o siriri, o cururu e o rasqueado.
O cururueiro da Chapada fornecia, assim, os alimentos imprescindíveis para o corpo e para nossas almas, aquecidas e acariciadas com sua música.
A saudade foi o que restou.
João Eloy é chapadense, médico, professor, escritor, compositor, músico, apresentador do Programa Varanda Pantaneira e articulista do Alô Chapada
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