Crianças brincando com arma, o envolvimento da polícia em falcatruas do morro próximo a Copacabana e intimidação a um atento repórter investigativo (“que está na chuva”, por se molhar), além de um olhar perdido de uma idosa rumo ao horizonte. Com essas peças, aos poucos, o diretor Andrucha Waddington estampa na telona, no longa Vitória, parte da vida de Joana da Paz (morta em 2023), personagem da vida real e do livro de Fábio Gusmão, Dona Vitória Joana da Paz. Quem faz a diferença em todo o rumo do filme é a estrela mais longeva do cinema brasileiro, Fernanda Montenegro, aos 95 anos.
Em cena, a protagonista Nina contesta o cumprimento do trabalho do major Messias (Marcio Ricciardi), enquanto cada vez mais ela estreita a relação com o repórter Flávio Godoy (Alan Rocha) e a inspetora Laura Torres (Laila Garin). Até ser notícia de primeira página nos jornais de 20 anos atrás, sob o título “Indignada, idosa filma a rotina de traficantes”. Nina tem que “morrer, para não morrer”, como ela define o fato de alterar a vida junto ao Programa de Proteção à Testemunha.
Enquanto levanta máximas como a de que a “polícia não vale nada” e restaura uma xícara de coleção, quebrada diante de um tiroteio, Nina cria suas intervenções na realidade, por meio de uma câmera com a qual filma crimes que atingem mulheres e alimentam rede de propinas. Numa realidade na qual há “droga pra lá, droga pra cá” no morro, Nina esbarra nas desculpas mais esfarrapadas das di- tas autoridades como a de que “o comandante está de licença”.
Diretor de histórias anteriores encabeçadas por Fernanda Montenegro, vide Gêmeas (1999), Casa de areia (2005) e O juízo (2019), Andrucha Waddington conduz uma trama que muito moderadamente faz cintilar o eco de Central do Brasil (pelo qual Montenegro foi indicada ao Oscar). Com o menino Marcinho (Thawan Lucas), ela embarca numa relação quase de distante avó. “O perigo vem da janela, não vem da criança”, Nina diz, quando um morador do condomínio, engolido pela violência do tráfico, reitera caminhos para o menor infrator: o instituto de correção ou o orfanato.
No filme Vitória, que demarca destinos para bala perdida, a nonagenária protagonista vai de encontro a descompromissos sociais e limitações para deserdados, como o caso do menino Marcinho e a vizinha Bibiana (uma trans interpretada por Linn da Quebrada, de Bixa Travesty). Discreta, na juventude, quando aprendeu a lida de massoterapeuta na base da observação, Dona Josefina terá muito a ensinar para vizinhos como o síndico Oswaldo (Thelmo Fernandes) e Leonardo (Sacha Bali). Com recados muito “urgentes” e “sérios” dirigidos à polícia, Nina tem nada para sustentar a pecha de “velha” muito louca que um dos personagens tenta atrelar a ela.
"Essa noite é para mim também muito especial, porque na idade em que estou, posso até continuar fazendo minhas leituras em palcos como estou fazendo há bastante tempo, mas cinema pede físico, pede fôlego. É um momento muito especial nesse palco aqui agora. Muito obrigada"
Entretenimento em prosa
Antes de acompanhar a pré-estreia em São Paulo do longa-metragem que protagoniza, a atriz Fernanda Montenegro, na tarde da última terça, apresentou o recital Uma Academia toda prosa, na sede da Academia Brasileira de Letras. Com textos de Ana Maria Machado, Ailton Krenak, João Almino e Machado de Assis, ela entreteve mais de 700 pessoas presentes. Por mais de hora e meia, Fernanda ainda pode ser vista, na leitura, pelas pessoas que não puderam entrar na sede, mas acompanharam as atividade pelo telão. Em março de 2022, Fernanda Montenegro tomou posse de vaga de imortal, ao ocupar a cadeira de número 17.
Frases de Fernanda Montenegro sobre Vitória
"O que me motivou foi a busca dessa personagem (Joana) por uma justiça social, portanto, humana."
"Dona Joana (a personagem da realidade) ficou muito feliz de eu fazer este papel. Sempre aceitei, na minha vida de atriz, personagens não acomodadas — assim como Dona Joana. Infelizmente, ela faleceu depois do fim das filmagens, mas resistiu 97 anos."
"Enquanto eu tiver plateia e coordenação mental estarei em cena."
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