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Opinião Segunda-feira, 30 de Dezembro de 2024, 15:22 - A | A

Segunda-feira, 30 de Dezembro de 2024, 15h:22 - A | A

ELISMAR BEZERRA ARRUDA

Da morte do sertão

Elismar Bezerra Arruda

O Sertão é um mundo em desaparecimento – e isto deveria preocupar a todos os que ainda amam, e querem da Vida as levezas e as alegrias de risos abertos, feitos poesia. O que ainda há de Sertão, vige em resquícios tímidos, bem minguados, nas poucas gentes que o conheceram de o vivenciarem, desde suas madrugadas de chuvas mansas, até às noites de plenilúnio em abril. Porque, o Sertão, era um correr de dias e noites, que se acumulavam leves no olhar alumiado por luas e estrelas, sem peso de dar cansaço, nem no corpo, nem na alma...
Antes de ser extensão de terra, território, o Sertão é o lugar de um tempo e o tempo de um lugar entranhado na gente, que nos totaliza; e tão singular, que é impossível estabelece-lo por dimensões de propriedade – assim, nunca se deixou exatificar.
Mas, talvez se possa dizer das abrangências do Sertão, quando inventaram as cidades modernas, para negá-lo. Sim, talvez. Pois, até bem pouco tempo, quem sabe, os limites do Sertão pudessem mesmo ser tomados como as franjas dos grandes centros urbanos, desprezadas: aquelas periferias de gente recém chegada, desterrada; ondetentava amalgamar forças, sabenças e esperanças, na urdidura de um em si, marcado pelos desprezos e todas as precisões.

Ali, aves-de-arribação, foi se urdindo na labuta difícil, diuturna, do ganhar a vida de arrabalde, sem nunca ser: nem Sertão, nem Cidade; então, nomearam aquela negação, de Subúrbio – um istmo, um marco profilático- conceitual, pra determinar em quase repugnância: “Além, é que é a cidade!”
Ali é que foi brotando e sendo cultivada essa dor-esperançosa, que faz falta não sentir, a que se chamou Saudade: sentimento que acabou transbordado para cantorias, e virando canções. Então, do que se viveu e se sabe, o Sertão não começa nem termina: ele acontece na gente, e de jeito que faz indagar: e quando é que a gente começa? Ao certo, ninguém sabe; dá-se nosso nascimento como o início – mas, para a imensidão das lonjuras dos tempos do Sertão, isso é recém!
A verdade é que o Sertão é muito difícil de se dizer o que é; ainda que, em si, traga indicado o sentido de ser tão mais que o que se vê e ouve. Uma conjunção que parece se esvair com o minguamento dos sertanejos, dos que viram a vida se fazer por rios, e plantas, e bichos, e lagos e chuvas, e brejos, por cambarás floridos, landis e pequizeiros erados; pastos de capim e pepalanto pra gazelas e veados. Todo fim tem seu início, que vai se desmilinguindo até terminar; uns demorados, outros breves – mas, sempre com alguma dor...
Dói o seu desfiguramento, dado por esse caricato e ridículo falar de moças e rapazes, que acham que sabem falar e cantar o Sertão: quando só fazem sucesso porque cantam ignorâncias para alimentar ignorâncias, que fazem enriquecer os que sabem que isso é ignorância; citadino é gente que se faz pelo consumo, inclusive desse cantar-besta, feito para quem não têm referência de viver além de trabalhar e descansar um pouco, para trabalhar mais.

Então, parece se elevar perenemente, o fim definitivo do Sertão; de modo que, sem sertanejos para alegrar as luas do Araguaia e de Minas, o poeta Drummond haveria de se perguntar, num verso: quede Sertão?
Morre o Sertão, viceja as Cidades – que é lugar tão seco de ternura, que ninguém se refere a ela como ambiência para se cultivar Paraíso: que Paraíso se urdiria num lugar de pressa sem fim, onde não se respeita nem o silêncio das noites feitas para os vaga-lumes voarem luminescentes, pra suas fêmeas verem e vagalumearem chamando-os para o amor? As cidades têm muito de pecado pra pagar, por impedirem esse milagre belíssimo. Sim, o Paraíso carece de terra-chã para ser, porque é na terra
que a Chuva se entranha amorosa, se guarda em imensos lagos límpidos, para saciar a sede de todos os demais seres; donde depois aflora, como rios ou lagos, cheia de saudades dos Céus, que o Sol vê e aquece-a até que vire nuvens e chova lindamente, outra vez. É uma insanidade as Cidades impermeabilizam a Terra à Chuva, quebrando essa intimidade milenar, tramada por Deus no iniciozinho dos tempos, num dia em que
Ele escrevia poesias...
Dizia-me um velho, cheio de consigos, quase centenários: “Nunca que gostaria de ter visto esses meninos e meninas que não sabem o que é a terra-chã, nem nunca sentiram seu cheiro quando se dá sedenta, em cio, à primeira chuva...” Quis lhe perguntar tantas coisas, mas fiquei a olhá-lo, guardando o silêncio. Depois de um tempo nesse silêncio de pensamentos, disse-me em despedida: “Quem viu um rio como esse aí, com vida que se cria ser sem fim... Ah, vou lhe dizer: quem viu aquilo, nunca vai ser menor, ainda que seja desimportante, que os que não o viram e nem vão ver...” Disse e se guardou em tristeza, olhando o chão – guardei aquilo como ensinamento.

A não compreensão das coisas, quando é necessário compreende-las, vira desafio de vida e nos desespera: é problema – que impele a gente buscar as respostas imprescindíveis para qualificar o viver. De todos os desafios, a fome é o primeiro e maior: porque desassossega e, às vezes, endoidece o corpo todo, a mente, a alma, exigindo comida; então, talvez pecado maior não existe, que punir quem rouba pra comer, esquecendo-se de ver quem e como lhe tiraram tudo antes. No Sertão do Araguaia nunca se ouviu falar de fome...
As Cidades foram inventadas pelo comércio, que se impôs como o modo de ser e de viver de todo mundo; de uma maneira que, quem nada tinha pra comerciar, teve que se oferecer inteiro, corpo e mente, feito mercadoria, para ter com o que comprar o próprio viver regrado. O quase engraçado disso, é que essa mercadoria que fala, e chora e ri e sofre sonhando, foi feita pra ser tratada como a menos importante, ainda que fosse e é, a que faz todas as outras mercadorias. Mas, a sua desimportância não se fez como se lhe pendurassem um adereço: impôs-se de dentro pra fora, na forma da fome; que para saciá-la, o trabalhador teve que se dar por qualquer preço...
A Vida é assim, cheia de laços: só se deixa mostrar, pelo que realmente é, se vista e examinada meticulosamente, pelo seu avesso. Um senhor que resolvera aprender a ler, disse certa vez na aula: “Se se arrepara bem, Professor, é nóis quem faz tudo virar riqueza; o diacho é que, quanto mais a gente fais, menos tem. Óia o que já trabaiei nessa vida...”. Ele dizia de si, do que percebera de si no mundo, do que a realidade imediata o fizera sentir duramente; o avesso disso, o que não se deixa ver na aparência, é o que precisava ser estudado – para saber o porquê daquilo. O Conhecimento mudou e segue mudando o mundo: é revolucionário; daí o perigo da Escola, para os poderosos.
Era no Sertão que Deus descansava de seus afazeres. Ali se alegrava de ri alto, fazendo estrelas explodirem de tanto brilharem, de contentamento imenso; era dum jeito, que em cada estação, Ele se alegrava com uma alegria nova e a refletia na Lua da Terra, pro Sertão ver e admirar. Lixava as unhas nas folhas da Simbaíba, conversava com o Ipê-Amarelo sobre a maciez das suas flores, e mangava sem repreender a embriaguez dos bichos que se endoidavam com as frutas da Marula; gostava de ver nascer cheias de fragilidades as Cutias, as Preguiças, os Tamanduás, que nem tinham Bandeira por sobrenome, os Papagaios e as Araras, despenados e trêmulos. Ali, às vezes se diminuía todo, para deitar nas costas das Libélulas e plainar sobre as águas calmas de algum lago.

Por causa de tudo isso, sempre lembrado pelos “mais velhos”, no Sertão não se dava festa sem as bênçãos de algum Santo ou Santa. Cada Santo tinha a sua festa. Cada uma tão bonita e alegre como a outra. Os casamentos arranjados ali, já eram abençoados desde o nascimento, inclusive as separações necessárias. Comida à vontade: ninguém pagava nada, porque tudo era de todos: do fazer ao comer. Somente aos artistas da sanfona, da zabumba, do pífano e da cantoria, é que se dava um adjutório: porque viviam disso. Era tudo tão leve, que Ele se fingia de vento e soprava aragem boa por entre os casais, a dançar também. No Sertão, Deus era alegre! Essa sisudez vingativa de Deus que se vê agora, nunca foi de Deus: foi coisa inventada por gente doida por dinheiro, a enganar os pobres com a ameaça do inferno – foi inventada na cidade; onde construíram igrejas, pra prenderam nelas o que mentiram ser Deus. Então, esqueceram o Evangelho do Nazareno, que nada nunca quis de ninguém, e começaram a vender a entrada no Céu ao preço de dízimo-dinheiro. Gente de coração duro, que, assim, enricou sozinha – inclusive sem Deus. Reparando bem, parece que inventaram a cidade para desinventar a Vida ensinada por Nosso Senhor; mas, na pedra secular, um escrito diz: “...é necessário reinventar a Vida; mas, é tarefa para os sem-nada, esses que sem nada a perder, têm um mundo a ganhar”!

*Prof. Dr. Elismar Bezerra Arruda é professor na rede pública de ensino

 

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