Nos anos de 1970, quase não havia estradas transitáveis no Norte e no Centro-Oeste do Brasil; asfalto, então, era coisa para os grandes centros urbanos, e com tal raridade, que poucas pessoas do Sertão conheciam. Era o tempo da rusticidade. Estudos para além do primário, só para os filhos de poucas famílias; ou para um ou outro filho de trabalhadores pobres, que conseguia ser aceito como seminarista, em algum Seminário da Igreja Católica. De fato, na maioria dos municípios brasileiros só havia a Escola Primária, que corresponde hoje ao Ensino Fundamental; a classe trabalhadora ainda não havia conquistado o direito de estudar, de seus filhos se formarem num curso superior...
De ouvir histórias sobre filhos de pobres que haviam estudado e se formado, graças aos Seminários, a gente sonhava entrar em algum Seminário – mas, não para seguir o sacerdócio: só para estudar. Era um golpe, que a gente ingenuamente imaginava dar na sorte mesquinha e na Igreja Católica. Como não havia nem celular, nem redes digitais, nem computadores, nem mesmo TV naquele nosso tempo e lugar, o tempo era dedicado aos estudos, leitura de livros – desde os clássicos da literatura, até algum da Adelaide Carraro –, gibis, bolsilivros, fotonovelas, literatura de cordel; e às atividades de casa, da roça e de alguma oficina dos nossos pais. Nosso pai tinha o que chamávamos de estaleiro: uma oficina artesanal de carpintaria, onde eram produzidos canoas e barcos para o transporte de até dez toneladas; tudo feito em madeira, sem o uso de nenhuma máquina, artesanalmente: com a força do braço, a destreza da mão e a
criatividade da mente...
Quando cursava Pedagogia no nossa UFMT, estudando os processos de ensino e aprendizagens, o desenvolvimento da coordenação motora das crianças, lembro do meu espanto e alegria ao constatar que a minha ótima coordenação motora, fina, havia sido desenvolvida lá no estaleiro – lavrando tábuas para os cascos dos barcos, com a enxó, e cortando os pranchões de pequi para as cavernas dos barcos, com a serra-de-volta, que exigia seguir o molde em S riscado na madeira. Não me lembro de ter havido, em algum momento, incompatibilidade entre o tempo do trabalho e o tempo da Escola, dos estudos; de forma a prejudicar nossas aprendizagens e não atender as exigências dos nossos pais: nota abaixo de 8 era vergonhoso. Na verdade, os processos educacionais-escolares e o modo de ser e viver em casa, convergiam para uma aprendizagem integral, teórico-prática, intelectual e moral; tudo cimentado por um senso de compromisso e disciplina, que se entranhou orientando, o nosso modo de ser e viver ali, e por toda a vida. Não havia apartação entre a educação familiar e os processos educacionais- escolares, não obstante as singularidades didático-pedagógicas destes; talvez, porque, os contrários a Educação viabilizadora do Conhecimento para os Trabalhadores, ainda não tivessem conseguido impor ao senso comum, essa balela de que “a família educa e a escola instrui...”
Então, num dia de trabalho no estaleiro, ao chegar cedinho (depois do meu pai, como era sempre), vi um reboliço de algumas pessoas lá embaixo, na margem do rio, onde os barcos e canoas aportavam; quis ir lá, ver o que era: meu pai não deixou.
Nossos diálogos, eram monossilábicos. Perguntava-lhe num muxoxo o que era aquilo, quando um velho Carajá, conhecido, aproximou-se cumprimentando meu pai e comentando sobre o ocorrido, falando uma mistura de palavras em português e na língua Inã:
– Puliça quagi m’obô-rurura...
Ao que meu pai respondeu:
– Pois é, esse negócio de bater nuszôto, pode dá nisso! Do pequeno diálogo, deduzir que um policial estava morre-não-morre, e que a causa era alguma desavença com alguém, contra quem ele havia cometido violência, e que viera se vingar. De longe vi o policial ensanguentado ser carregado e acomodado num colchão disposto numa voadeira; ligaram o motor Johnson da pequena lancha de alumínio, e saíram com toda a força rio acima...
Em pouco tempo as pessoas começaram a chegar ali, para ver o ocorrido. A voadeira com o policial ferido, já ia distante, sumindo. Notícia ruim corre ligeira e longe. Juntou mais gente no estaleiro, as conversas tomaram toda a atenção do meu pai, e o trabalho ficou suspenso. Agora, eu saberia de tudo: prestei atenção. Disse um:
–Rapaz, esse Sinval é terríve: num tem medo nem de puliça!
Outro, que acabava de chegar, perguntou como quem já sabe, mas não sabe tudo:
– Que diabo que aconteceu aí cumpadi?
O que ajudara carregar o policial para a voadeira respondeu, dando o caso desde o começo:
- Intão, lembra de quando o Zé Preto, esse puliça, fez mal pra mãe do Sinval? Intão, naquele dia ele disse que in mãe de homi, ninguém bati; tá aí, o resultado!
O Zé Preto tava vindo lá de baxo, de Santa Terezinha nesse barco; aí pararo aqui pra durmi e saí cedinho; o Sinval ficô sabeno, num se sabe cuma, e veio aqui de madrugada. Diz que chegou e chamô: “Zé Preto, é tu que tá aí mermo?” Zé Preto respondeu que era, e ele tacô a faca nele, sem dó! Óia, num morreu por sorte! A conversa seguiu cheia de opiniões e comentários.
– Pois é... lembrou um: diz que quando o Zé Preto foi dá o tapa na cara da mãe do Sinval, ela pediu pra ele não bater nela; pediu até pelo leite que ele tinha mamado – mas o bicho é ruim, e bateu nelaassim mesmo. Todo mundo, naquele tempo, lembra?, disse que aquilo num ia ficar daquele jeito: que o Sinval ia se vingar...
Dias depois, chegou a notícia de que o policial estava fora de perigo. Do Sinval, as pessoas comentavam com respeito, dando-lhe razão; à vista de que ninguém tinha lá grandes simpatias pela polícia. A violência policial ali era fato diário, especialmente contra os peões-do-trecho, trabalhadores vindos de longe: Goiás, Nordeste, Pará, para trabalharem na abertura das grandes fazendas: Suiá Missu, Porto Velho, Confresa. Falava-se das atrocidades de um certo Tenente do PM, que punha sela nas costas desses peões e lhes montava como em cavalos, cortando-os com espora. Foi nesse mesmo tempo, que um policial matou com um tiro na nuca, o Padre João Bosco – tudo porque ele e o Bispo Pedro Casaldáliga, foram à Delegacia de Ribeirão-Cascalheira acudir duas mulheres, que estavam sendo torturadas por policiais...
Semanas depois do ocorrido, chegou notícias de que o Zé Preto já tinha deixado o hospital; foi quando chegaram duas viaturas da PM, com uma meia dúzia de policiais, para prender e levar o Sinval para Barra do Garças – quase mil quilômetros de distância. A cidade se alvoroçou: “Como é que vai ser isso?”. As pessoas tinham uma mistura de receio, temor e admiração ao Sinval; dado o seu jeito de ser, ensimesmado.
Diziam que ele tinha “pauta com o cão”, que bala não acertava, nem entrava nele, que era capaz de se esconder, de um jeito, que ninguém achava. Os carros da polícia desfilaram pelas três ruas principais, exibindo-se, mostrando a força de suas armas, buscando intimidar o ambiente, as pessoas. O Sinval, que devia estar em alguma atividade no campo, ali perto da cidade, foi avisado da chegada da polícia; que estava “armada até os dentes”, e que o procurava para prender...
– Pois, não! Homi num se esconde de puliça: vou lá encontrar eles!
Quase que imediatamente, todo mundo ficou sabendo que o Sinval ia “enfrentar” os policiais. Ressabiadas com outros acontecimentos violentos, brigas feias, de faca e tiro, com mortos e feridos, e juras de vinganças – as pessoas, especialmente as mães, ficaram na expectativa: trancaram nós, a meninada, em casa, temendo o pior. As ruas ficaram sem ninguém. Os policiais com as viaturas se posicionaram próximo de onde souberam que o Sinval morava: bateram à porta, ninguém atendeu, um vizinho informou que ele saíra cedo pra trabalhar; ficaram à espera. Cada fresta de janela e porta das casas no derredor, ficou pequena para tantos olhos medrosos e curiosos.
Não demorou, Sinval apareceu na ponta da ruazinha de chão poeirento, à pé; nem entrou em casa: foi direto para onde estavam os policiais. Transparecia serenidade, destemor e algum enfado. Os policiais pareciam mais tensos e temerosos: firmaram-se em posição de enfrentamento, mãos nas armas, um com fuzil atravessado no peito – mesmo tendo verificado que ele vinha desarmado; olhavam-no fixamente, esperando, sisudos, encabulados com aquela serenidade.
Em silêncio ele chegou na distância de poucos metros dos policiais e perguntou com voz de quem tem autoridade:
– Vocês tão me procurando?
– Sim! Disse o que parecia ser o chefe: – O senhor está preso, em nome da lei!
- Pois, não: tô aqui!
Os policiais se entreolharam cheios de dúvidas e receio; dois se aproximaram dele, cada um segurou um de seus braços, colocando as algemas em seus pulsos. Quando quiseram levantá-lo até a carroceria da viatura C-10, ele recusou asperamente:
– Dêxa que eu mesmo subo!
Assim, algemado, ele saltou do chão para a carroceria da caminhonete, encabulando os policiais com aquela agilidade e força. Os olhares atrás das frestas de janelas e portas se esbugalharam de admiração: o fato correu ruas e becos de boca em boca, aumentando a fama de Sinval. Mais ainda, quando, meses depois, ele chegou livre. Voltou faceiro, não apenas porque estava livre, mas pela forma como o caso foi encerrado: de certo modo, dando-lhe razão.
Naquele tempo, não era raro ter na corporação, policial analfabeto ou semialfabetizado: exigia-se mais coragem e brabeza, que formação escolar, intelectual; de modo que, retiradas as acusações sobre ele, convidaram-no a integrar os quadros da Polícia... Ele contava garboso, que respondeu recusando, sem duvidar:
– Num nasci pra ser cachorro do governo!
*Prof. Dr. Elismar Bezerra Arruda é professor na rede pública de ensino
O Alô Chapada não se responsabiliza pelas opiniões emitidas neste espaço, que é de livre manifestação
Entre no grupo do Alô Chapada no WhatsApp e receba notícias em tempo real