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Opinião Sábado, 19 de Abril de 2025, 08:41 - A | A

Sábado, 19 de Abril de 2025, 08h:41 - A | A

Elismar Bezerra Arruda

Dicke - A memória que Chapada precisa avivar e celebrar

Elismar Bezerra Arruda

A composição do primeiro Conselho Estadual de Cultura era uma verdadeira plêiade de ilustres personalidades da cultura estadual, dos que me vêm à memória: Ricardo Guilherme Dicke, Ronaldo de Castro, Gervane de Paula, Carlos Rosa, Padre Pedro Cometi, Ivens Cuiabano Scaff, Aline Figueiredo; por suas diversas manifestações, multidisciplinarmente, a Cultura era tratada. Havia discussões muito interessantes sobre a Cultura em geral, as especificidades da Cultura Mato-grossense, cuiabana, por suas diversidades e singularidades, cujo caráter pedagógico emergia esclarecedor, especialmente para um novel em face daquela intelligentsia de tantas vivências nos mais diversos ambientes intelectuais. Havia os que falavam mais, os que menos se expunham e os que gostavam de aprofundar a conversa puxando por lembranças de aspectos, fatos e acontecimentos históricos de Cuiabá e do Mato Grosso de antanho – aprendia muito. Gostava das conversas com Padre Pedro Cometi, especialmente sobre os tempos de Dom Aquino, de quando foi seu secretário particular...

Era gente com história e obras importantes, cuja relevância era reconhecida além-fronteiras regionais; e um amor profundo por Mato Grosso. Triste ver a moçada ignorando a obra e a biografia de Aline Figueiredo, o seu livro belíssimo: A propósito do boi; a obra singular de Gervane de Paula, que articula o regional ao universal por linguagens e traços e cores únicos, num engajamento inteligente e necessário; a poesia, a prosa cuidadosa e bonita do nosso Ivens; as pesquisas do Carlos Rosa: Do Falar Cuiabano; o texto bom, profundo, prosa e poesia, do jornalista Ronaldo. E ainda vermos governantes emplumados de arrogância, a falarem de qualidade na Educação, impondo decisões políticas jumentas às Escolas – que manietam o seu ser, limitando-as didático-pedagogicamente, para impedir crianças e juventude de conhecerem tudo isso e mais...

Um dia, depois da reunião que terminou já passada, em muito, a hora do almoço, fui levar Ricardo Guilherme Dicke à sua casa; que ficava no bairro Coophema, ali na grande região do Coxipó da Ponte. Dicke era caladão, falava pouco e, naquele dia, quase não dissera palavra, durante toda a reunião: estava acometido por uma dor de dente, dessas que desestabiliza e desespera até o mais sereno e asceta dos monges. Dicke entrou no carro com gestos vagarosos e, em silêncio: pôs o dedo indicador em um dos lados da boca, e ficou pressionando a bochecha na altura do dente inflamado, buscando algum alívio. Saímos da Residência dos Governadores (onde estava instalada a Secretaria de Estado de Cultura e funcionava o Conselho Estadual de Cultura) e ganhamos a Rua Barão de Melgaço: liguei o som, colocando no dispositivo um CD – tinha uma coleção belíssima deles; quando os primeiros acordes da música plenificaram o ambiente móvel, seguidos da voz maravilhosa da cantora, Dicke me olhou mais afirmando que perguntando:

– Dóris Day?!

Vi que a música entrara por todas as sensibilidades daquele intelectual singular, que parecia levitar com a melodia bem arranjada, entorpecendo o corpo, fazendo-o esquecer a dor lancinante. Olhos semicerrados, recostado no banco, a pergunta soara mais para demonstrar que gostava do que estava a ouvir, porque sabia quem cantava. Dicke parecia lembrar tempo bom: quem sabe de alguma das passagens suas, vividas no Rio de Janeiro dos anos de 1960, quando ainda muito moço, lá viveu, morou, para estudar. O sentir é uma conjunção de corpo e mente, ou talvez, mais ainda: quem sabe, a unificação da corporeidade e da espiritualidade nos espaços imensos e desconhecidos da mente, quando tudo vira alma – essa indefinição que está além, tão muito além e leve, que dor nenhuma alcança chegar e doer...

Dicke lembrava coisa boa, via-se por seu jeito, porque esqueceu o dente, tirou o dedo de sobre a dor e olhou distante, muito pra depois do que se via de rua e casas e carros e barulhos naquela Cuiabá de meados dos anos de 1990. Rodamos bons minutos sob o silêncio de Dóris Day, cantando Whatever Will Be, Will Be (Que será, será); eram contemporâneos: ela fez mais sucesso como atriz e cantora entre as décadas de 1950 e 60, quando Dicke estudava filosofia, Merleau-Ponty, arte. Caminhos de Sol e de Lua foi o primeiro livro que Dicke publicou, 1960; cujo título parece um verso, quase um Haikai, que não deixa ver a profundeza árida da escrita do intelectual chapadense...

Viveu pouco, o Dicke; ainda que parecesse ter mais anos de vida que os 72 anos, quando partiu. Dóris Day, não: chegou a quase 100 anos; nasceu antes e morreu bem depois de Dicke. A cabeça da gente é feita de memórias, é o que faz cada um ser a singularidade que é; mas, a memória é mais que lembrança, mais que uns registros guardados pela mente – é uma construção em mosaico luminoso, donde decorrem luminescências poéticas, que rebrilham conhecimento vivido, de vivências feito, prenhe de outras vivências e porvires; daí crer, que a música de Dóris aliviou Dicke, fê-lo viajar: o Rio era bonito demais, demais de poético, no tempo de Dicke na imensa e conceituadíssima UFRJ; onde até hoje é difícil de entrar, e segue bela pra se vivenciar...

Música boa redefine o tempo, redimensiona os espaços, as distâncias: chegamos logo; solicitado por Dicke, para que descesse e entrasse, desliguei o carro, desci, e entrei após ele na casa. Entrei sob o cumprimento tímido e sereno da sua companheira, que demonstrava preocupação com a sua demora para o almoço; o que me deixou apreensivo por minha presença, pus-me vigilante sobre o tempo, para que não demorasse, para não desarranjar o tempo e a atmosfera conjugal dos dois – porque era possível, muito possível, que ela ainda o estivesse esperando para o almoço, para que não almoçasse sozinho. Sim, os corpos sexagenários exigem certa regularidade no comer, no dormir e no sentir o outro nesses tempos-ambientes todos: as mulheres-companheiras parecem saber mais disso.

Tinha comigo, já, naquele então, a desconfiança de que depois de certas vivências, de ter visto o tempo correr marcado por tantos e diversos rituais de passagem, o melhor lugar do mundo é a casa da gente; especialmente as construídas ao longo de décadas, conforme as dimensões e condições do ganho contado nos centavos: é o lugar onde se guarda as intimidades e os costumes mais ternamente urdidos, protegidos de olhares ruins. Na casa de sexagenários (dos de antes da parafernália tecnológica digital) ainda se almoça, e, se a saúde e os hábitos deixam, janta-se à mesa; tem café da tarde, tem café pra visita, tem-se ali, uma ambiência tramada sem pressa, com brumas e sol, num tempo vivido por rituais de celebrações do está-sendo plenificado por sabores gozosos. É como quem acaricia o imponderável, naturalmente; as coisas têm lugar, cada qual, aconchegadas por esmeros, de jeito que por entre elas o tempo vagueia fresco, viçoso, com alegria sem alarde, preguiçoso, sem a agonia de prazo besta, sem hora-marcada. Tudo orientado pela quentura do sol e as sombras das plantas; tão despreocupadamente, que vi, dois desses, porem-se à tardinha na porta da rua, agasalhados em preguiçosas na calçada, a rirem da pressa da rua que passa...

Elogiei a casa com sinceridade. Admirei a arrumação, a limpeza minuciosa das coisas, uma obra de arte sobre uma cômoda, pintura à óleo, que achei interessante; aí, seguindo meu olhar, a esposa de Dicke me disse ser de autoria dele, e que estava à venda. Ele me olhou desconcertado, inibido, como se envergonhado por ela ter-me oferecido a obra: perdi-me no desconcerto dele; foi quando, incomodado com minha demora, disse-lhe qualquer coisa agradável, sem coragem para levar a obra: ficou-me esse arrependimento continuado. Porque há mimos, elogios, sinais de benquerença, que só o tempo nos ensina a reconhecer: talvez, ela quisesse que eu comprasse aquela obra, para que tivesse e dissesse depois, ter uma obra de Dicke – mas, não entendi assim, naquele então: desconcertou-me o desconcerto de Dicke. Despedi-me apressado, preocupado com a hora e o almoço dos dois; mas saí, pensando que depois falaria com Dicke sobre a obra, e a compraria...

Os originais de Rio Abaixo dos Vaqueiros comporiam um quadro bonito em algum espaço da casa, à vista de visita inteligente, dispostos sobre um aparador, encimado por aquela obra pendurada na parede branca; folheariam as páginas datilografadas em máquina de escrever manual, veriam alguns erros de datilografia, as marcas dos tipos gastos, com defeitos, e anotações à mão. Certamente imaginariam as mãos de Dicke escrevendo tudo aquilo, a cabeça fervilhando, os sons dos tipos batendo no lado preto da fita da máquina, imprimindo no papel em branco as letras, as palavras, os longos e bem tramados parágrafos; quase se ouviria o barulho característico do carro móvel acionado pela alavanca com o dedo mindinho da mão direita, fazendo-o voltar à margem esquerda da página, para começar uma nova linha...

Seria uma viagem muito interessante. Mas, apenas os originais, encontrados entre as tantas coisas desarrumadas na diversidade de livros e cadernos e recortes de jornais e revistas, restaram pra mim. Lembro vagamente de alguém me entregando esses originais, sem que, na hora, tivesse atinado sobre o que era; tempos depois, foi que vi o que eram: guardei-os com cuidado, vez em quando revejo. Chapada dos Guimarães ficaria mais bonita culturalmente, com um lugar próprio, arquitetonicamente concebido e erguido para abrigar, preservar e celebrar a memória belíssima de Dicke – custa pouco, face à riqueza que ele e sua obra maravilhosa representam! Amém...

Prof. Dr. Elismar Bezerra Arruda é professor na rede pública de ensino

 

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