Somos mais de 212 milhões de habitantes segundo o último censo de 2022 do IBGE - 56% correspondem a população negra. Negros, segundo IBGE, compreende pessoas pretas e pardas, autodeclaráveis. No entanto, oitenta porcento dos usuários do SUS são pessoas que se autodeclararam pretas ou pardas.
O Ministério da Saúde (MS) através da Comissão Nacional de determinantes Sociais, assim como a Organização Mundial de Saúde (OMS), preconizam raça/cor e etnia como fatores de condição de vida que interferem no processo saúde doença, ou seja, são determinantes sociais de saúde.
O termo raça que se discute no campo social não é uma característica biológica, pois não existe raça humana, apenas espécie humana, fato comprovado com os achados do projeto genoma, que mapeou todo o DNA humano. Em muitas situações foram encontradas mais diferenças genéticas entre pessoas da mesma cor, brancas por exemplo, do que entre pessoas pretas e brancas. Já o termo etnia, significa grupos de pessoas que compartilham características socioculturais, costumes, tradições, religião, como: a populações quilombola, ciganas, judeus etc.
Atualmente discute-se que o principal determinante de agravos à saúde relacionado a raça/cor é o racismo, pois, incide negativamente sobre outros determinantes, como modo de vida, trabalho, habitação, ambiente, educação, lazer, cultura, acesso a bens e serviços essenciais. O racismo como um fenômeno, histórico-cultural e político, tem em sua denominação a representação de um sistema organizado, que desvaloriza e enfraquece aqueles grupos considerados inferiores e distribui, de forma diferenciada entre eles, as oportunidades e os recursos sociais de modo a mantê-los em condição de inferioridade.
O racismo confere microagreções às pessoas negras provocando danos profundos à saúde mental e emocional, além de perpetuar ambientes hostis e excludentes. As agressões recorrentes reforçam o estereótipo negativo da cor, por exemplo: associar a pessoa negra com a criminalidade; objetificação sexual do homem negro, suposições sobre inteligência, exotização (tornar exótico) por conta de traços fenotípicos e estereótipo da mulher negra raivosa.
Na saúde, o racismo pode se manifestar no campo pessoal, interpessoal e ou institucional. No campo pessoal, caracteriza-se por um sentimento internalizado de superioridade branca e neutralidade diante do racismo, perpetuando os privilégios de ser branco. No campo interpessoal, pode se dar através de palavras, gestos e atitude. Por exemplo, uma pessoa negra vítima de assalto chegar no posto de saúde e ser tratada como assaltante, ou o profissional de saúde deixar de explicar os procedimentos médicos porque a pessoa é negra, supondo que não teria capacidade de entender tais procedimentos. No campo Institucional, o racismo pode se manifestar através da invisibilidade das doenças que são mais prevalentes na população negra, como o diabetes, hipertensão, anemia falciforme, bem como, pela a não inclusão da questão racial nos aparelhos de formação ou a dificuldade de acesso aos insumos e tecnologias de saúde à essa população. Observem que há dados epidemiológicos que refletem as consequências do racismo na saúde das pessoas negras:
· Trinta e cinco porcento mais mulheres negras do que brancas não realizaram nenhuma mamografia ao longo da vida (2021);
· Mais de 60% das mortes por AIDS foram de pessoas pretas e pardas 70% das crianças com sífilis congênita eram filhas de mães negras;
· A mulheres negras estão mais sujeitas a violência obstétrica do que mulheres brancas. As mulheres negras, por exemplo, têm 50% menos chances de receber anestesia durante as episiotomias (procedimento cirúrgico que consiste em um corte na região do períneo, entre a vagina e o ânus, para facilitar o parto) Instituto da Mulher Negra (Geledés 2021);
· A proporção de pretos (38,2%) e pardos (39,2%) que se consultaram com um dentista nos últimos 12 meses é menor do que a de pessoas brancas (50,4%) e também inferior à média nacional que foi de 44,4% (89,1 milhões);
· Dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) para 2013 mostram que as mães indígenas, pardas e pretas são mais jovens e a faixa etária de 20 a 24 anos concentra o maior percentual de mães nas populações de raça/cor preta (26,0%), parda (27,5%) e indígena (26,8%);
· De acordo com dados notificados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do total de 1.583 mortes maternas em 2012, 60% eram de mulheres negras e 34% de brancas (MS/SVS/CGIAE).
Observa-se que a cor intersecciona com outras condições que aumentam a vulnerabilidade à violência e aos agravos à saúde, sendo algumas delas:
· O senso de 2022 apontou que a taxa de desemprego foi de 11,3% para pessoas brancas, 16,5% para pessoas pretas e 16,2% para pardos;
· No mercado de trabalho formal, os cargos gerenciais são 69% ocupados por brancos, enquanto apenas 29,5% são ocupados por pretos ou pardos;
· O rendimento mensal médio de pessoas ocupadas em 2021 foi: R$ 3.099 (três mil e noventa e nove reais) para brancos, R$ 1.764 (mil setecentos e sessenta e quatro reais) para pretos e R$ 1.814 (mil oitocentos e quatorze reais) para pessoas pardas;
· Apenas 3,5% dos estudantes de medicina no Brasil são pretos. Nas universidades particulares, cai para 2,2% e nas públicas sobe para 7,4%. (Universidade de São Paulo/ Lei de Acesso à Informação).
A desconstrução de formas de pensar e agir pautadas na construção de práticas pedagógicas antirracistas configuram o letramento racial. Este compreende reconhecer o racismo como um problema social atual, e não como uma coisa do passado; em reconhecer que há privilégio simbólico e material em ser identificado como branco; entender que as identidades raciais são aprendidas, construídas socialmente, e assim, podem ser desaprendidas; possuir vocabulário racial que facilite a discussão de raça, racismo e antirracismo; traduzir e interpretar códigos e práticas racializadas e analisar o racismo em suas mediações com as desigualdades de classe, hierarquias de gênero e heteronormatividade, ou seja, levar em consideração as interseccionalidades.
Após a abolição, não houve qualquer reparação aos ex-escravizados e seus descendentes, cuja entrada formal de homens e mulheres negras no mercado de trabalho livre foi negada. Enquanto isso, imigrantes passaram a se constituir como pequenos proprietários, partindo assim de um lugar social distinto e privilegiado. O Brasil, recém república, tinha que se modernizar e para tanto, a população passou por um “branqueamento,” o que levou a incentivos para que imigrantes europeus viessem para o país. A abolição não mudou de forma qualitativa a estrutura desigual da sociedade brasileira, ao contrário, a mudança se deu no sentido da autopreservação do privilégio e da continuidade de desumanização de pessoas negras.
O racismo e suas práticas não são questões superadas, pelo contrário, permanecem vivas socialmente, cujas consequências são nefastas e violentas à sociedade em geral. Entretanto, são os sujeitos negativamente racializados aqueles que sofrem de maneira cotidiana seus efeitos. Segundo Ângela Davis, filósofa, ativista, escritora estadunidense “Numa sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista.”
Em conclusão, para que os princípios do SUS (Integralidade, universalidade e equidade) sejam assegurados à população negra é necessário o combate ao racismo institucional do sistema de saúde. O letramento racial é um começo e demanda para isso, um conjunto de iniciativas por parte da gestão acadêmica. A inclusão do tema nos currículos de graduação em saúde, o incentivo aos projetos de extensão e pesquisa sobre saúde da população negra e suas iniquidades são exemplos de como a universidade pode contribuir para uma sociedade antirracista.
* Esse texto é a transcrição do pronunciamento feito pelo autor na semana pedagógica da Faculdade de Ciências da Saúde (FACIS) da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) no dia 11 de fevereiro de 2025.
Alcione Lescano de Souza Junior é professor de Fisiologia Humana na Universidade do Estado de Mato Grosso
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