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Opinião Sábado, 09 de Novembro de 2024, 12:20 - A | A

Sábado, 09 de Novembro de 2024, 12h:20 - A | A

Elismar Bezerra Arruda

O esvaziamento das mãos que apedrejavam

Elismar Bezerra Arruda

Em Sua Face atiraram o adultério, apresentando-Lhe a Mulher flagrada em sua intimidade mais gozosa, com outro, um que não era o seu marido; com ódio nos olhos, e pedras nas mãos, exigiam-Lhe um julgamento, um veredito, para aquele fato: - Podemos matá-la a pedradas? Todos eram homens, de poucos saberes; soubessem, saberiam que pedir-lhe o julgamento, antes de tudo, significava reconhecer a Sua autoridade para afirmar ou não a plenitude dos poderes patriarcais – com que se faziam homens. De Mulher, ali, só ela: arrastada e amontoada sobre si mesma, em humilhação, por confrontar a tradição de nada ser, diante de qualquer homem...

Proibida que era, de atender as carências de suas carnes, a lhe pedirem o prazer que não tinha mais ou que jamais tivera com o que a esposara, mesmo em face do perigo que materializava ali, fez confirmar o dizer antigo: “a carne reina!”. O espírito subsumido em tempos sem conta na dureza patriarcal, quedou-se languido aos desejos da sua carnalidade – e deu-se ao outro, sem passado e sem as amarras do pensar em futuro...

Talvez, a Filosofia da Práxis, séculos depois, tenha emprestado desse sentimento indômito, elevado a bom senso, seu conceito mais revolucionário: de que a espiritualidade não existe sem a respectiva materialidade – que, ainda assim, não determina aquela em tudo. De fato, reparado bem, vê-se que a Vida se fez e se desenvolveu nesses milênios todos, por essa belíssima interação, às vezes calma, às vezes violenta; e que tudo seja, quem sabe, uma dança divina: o divertimento mais alegre e querido de Deus...

Naqueles tempos e lugares, andava o Nazareno a ensinar gente de toda índole, gente burra, gente maldosa, os caridosos e humildes, solidários, os violentos, sodomitas, mesquinhos e samaritanos, sobre um modo de viver que, de tão superior, era leve e alegre; que enchia de inveja e ira os donos das Terras, do Estado, dos Tribunais, das Igrejas e dos poderes, que os tinham plenificados pelas mais sádicas violências e desprezos. Ele os confrontava, portanto, em seu interesse-maior de seguirem sendo donos da vida e de tudo o que lhes garantia o conforto que negavam aos demais; contrariava suas leis, desde um Testamento que a Sua Presença secundarizava, tornando-o sem muita valia. Ante a pergunta daqueles homens, Ele curvou-se ao chão, em desconcertante serenidade e silêncio, a escrever o que ninguém leu, a sentir o arfar do ódio e o desespero da Mulher humilhada, pressentindo seu olhar insubmisso como ninguém jamais sentiu...

Os homens queriam a confirmação da lei antiga, do direito de matar qualquer Mulher insubmissa; pelo que anulavam a vergonha do chifre, aplacava a raiva, lavavam a suposta honra – e assim, pelo medo, pelo pavor, servir de exemplo às demais mulheres. A tirania se substancia da anulação da vida do outro, de quem subtrai todo o poder pra si e, assim, se faz rei-absolutista ou patriarca – que se difunde e continua reverberando suas perversidades através das sabujices nojentas dos capitães-do-mato sobre os simples, os humilhados. A tirania não suporta esperar, de modo que o breve silêncio que Ele os fez sentirem, repercutiu tão dolorido como se séculos de peregrinação no deserto de suas almas secas. Na Mulher, não: ela só tinha para si, a perspectiva da dor do apedrejamento, que dilaceraria seu corpo até mais nada sentir...

Do homem-amante, que lhe satisfazia os desejos, satisfazendo-se, deste nada falaram, nem acusaram: a Mulher era o ultraje, ele não. Ela seguia à carnificar o pecado de Eva. Nem do homem-marido se ouviu falar, nada foi relatado – como se no ódio manifesto dos denunciadores, com pedras nas mãos, já estivessem presentes a vergonha e a vontade do ultrajado. Mas, ali, curvou-se o tempo sob aquele silêncio santo, desfigurando a tradição de séculos, criando outra ambiência, que desesperava o jeito patriarcal de ser e agir – à espera da resposta, para consumar o apedrejamento. Então, sem levantar os olhos aos homens, Ele fez a Voz calma e profunda ecoar como um canto, convergindo tudo para si: - Atire a primeira pedra, quem nunca pecou!

Os templos milenares da tradição, já abalados por aquele silêncio de paz e perguntas, desmoronaram-se desamparados da autoridade que os sustentaram ao longo de tempos imemoriais. Fez levantar-se naquele átimo, e em todos os horizontes que viessem a se formar depois, outro sol – cuja claridade, alumiou a ignorância, envergonhou o desamor e fez as pedras saltarem das mãos daqueles homens, que enxergaram suas minúsculas pequenezas pela primeira vez. Soltarem-se todas as amarras da Mulher – e o véu do gênero masculino-patriarcal rasgou-se de cima a baixo, desnudando suas vergonhas. Foi quando se viu a feminilidade se abrir num riso sem limites, a exibir-se dona de si, por sua mais autônoma carnalidade: a criar e alegrar outra espiritualidade...

Um a um, despidos da arrogância que lhes vestiu até ali, saíram guardando silêncio de vergonha e impotência; cada um sabendo de si, das suas coisas inconfessáveis, do que ninguém podia saber para não deslustrar o que os afigurava ser, de suas vontades insaciadas, proibidas por um viver que, ao manietar o viver do outro, da outra, os amarraram nesse não-viver. Então, ela sentiu pela primeira vez o Corpo e a Alma unificados em si mesma; deu-se conta da liberdade que a invadira, levantou o olhar e viu, pela primeira vez, um olhar de Homem. Ele a olhou devagar, com compaixão, perguntando-lhe sem precisar de resposta:

- Cadê eles, os que te acusaram; os que queriam te apedrejar?

Não sabia responder, não achava as palavras: mostrou-Lhe o olhar feminino, prenhe de compreensão, cheia de contentamento, de benquerenças e ternura, a dizer com seu silêncio, que os homens haviam ido, e que pareciam esvaziados da ira que a trouxera ali, de arrasto. Diz-se que nunca se viu olhar mais ternurento que o Dele, vendo-a sozinha e cheia de esperanças. Diz-se que ela, meio que levitava sobre a alegria de se saber gente, de que dali em diante poderia querer e não querer, e dizer, quando não quisesse, que não queria – chorou e riu riso de gratidão; viu-se como jamais vira: plenificada de um amor desmedido, desejando outro prazer, que a própria carnalidade jamais sentira e não alcançaria ser, per si...

- Nem eu, também, não te condeno: vá e não peque mais...

Então, ela chorou em soluços. Quis perguntar-Lhe tanta coisa, mas calou-se acariciada pelo momento. Levantou-se ajeitando as vestes, que a ira rasgara; passou as mãos nos cabelos desalinhados e, ainda assim, sentiu-se bonita, uma boniteza de se saber Mulher. O que fazer com sua carnalidade, com os desejos e as vontades que brotavam autônomas no corpo jovem e cheio de frêmitos? Como orientar tudo aquilo, conforme a Espiritualidade que a libertava da pura carnalidade? Caminhou para casa, olhando a rua e as gentes sem desviar o olhar ao chão, ante outros olhares, inclusive os de homens – como sempre fora. Ia conforme Ele lhe ordenara, mas, sabendo que nunca mais sairia dali, daquele milagre. Abriu a porta da casa e entrou, abriu as janelas, olhou o mundo desde as suas janelas, olhou tudo devagar e com entendimento: enxergou-se mais e melhor...

Na manhãzinha, bendisse o dia novo, a casa vazia de marido e plena de horizontes. Riu-se com o dia, com outra alegria...

* Prof. Dr. Elismar Bezerra Arruda é professor na rede pública de ensino

 

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Geraldo David 09/11/2024

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