O que era para ser apenas mais um mutirão de cidadania do governo estadual se transformou num espaço de autocuidado que levou dezenas de mulheres chapadenses a refletir sobre seu passado, permeado por episódios de violência, e mirar num futuro melhor. “Quando eu ouvi as palavras da assistente social, eu me senti encorajada em contar minha história, que fui muito sofrida, como a de muitas mulheres, mas que hoje é uma história cheia de alegria, e eu decidi dividir isso com elas, por que eu acho que todo mundo tem direito de ser feliz”.
O relato foi feito por Neuza Rondon, 68 anos, durante a visita do Ônibus Lilás, realizado nesta sexta-feira (31) no salão da Igreja do Divino, localizado no bairro São Sebastião. Neuza disse que não sabia que estava sofrendo algum tipo de violência, pois achava normal que todas as mulheres apanhassem dos seus maridos.
“A gente começa a achar que aquilo é normal, que é assim mesmo, e vai levando a vida, mesmo sabendo que tem algo de errado; mas quando vemos um homem matando sua companheira, é triste, pois ele vai preso e os filhos ficam sem pai nem mãe, então temos que falar disso, contar para nossas amigas e vizinhas que isso não está certo, e quando eu ouvi a assistente social, aquilo me tocou, eu chorei, mas foi um choro de liberdade, eu me libertei e quis compartilhar minha história”, desabafou Neuza em entrevista ao Alô Chapada.
A assistente social de quem Neuza fala é Fátima Vieia do Prado, 59 anos, servidora da Secretaria Estadual de Assistência Social (Setasc-MT). Ela abriu o evento falando sobre como a sociedade deve mudar a forma de entender a mulher, para que as próximas gerações de homens não se sintam no direito de violar o corpo feminino. “A sociedade machista entende que o corpo da mulher é propriedade do homem, e essa visão precisa ser mudada, e para que isso ocorra precisamos começar a educar nossas crianças sobre como mulheres e homens tem os mesmos direitos, são seres humanos que merecem respeito, e que a mulher deve ser tratada como um ser que merece esse respeito”, explanou Fátima.
A assistente social também falou sobre como pequenas violências, como um xingamento, podem desencadear violências maiores. “O feminicídio quase sempre começa com o homem desprezando sua companheira, depois abusando verbalmente, e termina com o assassinato dessa mulher”. O feminicídio é o assassinato de mulheres pelo simples fato de serem mulheres e segundo dados dos órgãos de segurança, os motivos mais comuns são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda do controle e da propriedade sobre os corpos de suas companheiras, comum a sociedade capitalista que se fundamenta pela existência da propriedade privada dos meios de produção.
“O corpo da mulher é visto como um aparelho reprodutor, feito para dar filhos para o marido, tornando as esposas propriedades privadas deles, que acabam decidindo por nós o que fazer com eles”, disse Fátima.
Outra mulher que se sentiu tocada pelas palavras da servidora foi Adélia Zulmira da Silva, que divide com Neuza a mesma idade, 68 anos, e a mesma trajetória de sofrimento e superação. “Eu passei muito tempo sofrendo violência verbal do meu marido, e não tinha apoio da minha família, pois naquela época era assim que era, o homem mandava na mulher; muitas vezes quis deixar nosso casamento mas tinha medo, a mulhjer era julgada”. Mãe de quatro mulheres e um homem, Adélia disse que demorou para entender que aquele tipo de tratamento que recebia do seu ex-companheiro não era certo.
“Ele começou não deixando eu ver meus pais, depois eu não podia sair de casa, até que chegou um ponto que eu não podia fazer nada sem a permissão dele, era horrível, eu vivia com medo dele”. Mas contra todas as estatísticas, a história de Adélia encontrou um final feliz. Com apoio do irmão, ela conseguiu deixar o ex-marido e há 15 anos se mudou para Chapada. “Hoje eu tenho orgulho das conquistas das minhas filhas e da vida que conseguimos construir, e poder falar disso aqui, nesse evento, foi muito importante pra mim”.
Mutirão da Cidadania
O Mutirão de Cidadania é realizado pelo Governo de Mato Grosso, por meio da Secretaria de Estado de Assistência Social e Cidadania (Setasc) e da Unidade de Ações Sociais e Atenção à Família (Unaf), coordenada pela primeira-dama de MT, Virginia Mendes. A ação leva serviços de cidadania e sociais para os moradores do município, com destaque para a prevenção e o combate à violência doméstica, com a equipe do projeto Ônibus Lilás.
A programação contou com diversas atividades, como de roda de conversa e palestra voltadas para a prevenção e o combate à violência doméstica. Também foram realizados exames oftalmológicos gratuitos, aferição de pressão arterial, emissão de carteira do idoso, foto 3x4, plastificação de documentos, requerimento de 2ª via de documentos pessoais, orientação jurídica pelo Procon estadual e atendimentos pela equipe do Sine.
O ciclo de solidariedade se fez presente também via a figura do guarda-roupa do projeto Cabide Solidário. Roupas, calçados e acessórios foram separados e colocados para doação durante o evento. “Isso aqui é algo muito bonito, eu me senti sendo abraçada, não tenho condições de comprar roupas em loja, então vir aqui e ter roupas pra escolher é uma felicidade que não sei nem falar. Vou dar de presente pra minha família e é claro, pra mim", disse Luana Silva e Castro, 28 anos.
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