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VÍTIMAS DA ESCRAVIDÃO

Descendentes de escravizados preservam história ancestral

Do Gazeta Digital

"Existe uma história do povo negro sem o Brasil; mas não existe uma história do Brasil sem o povo negro’", diz o fotógrafo e ativista Januário Garcia. Descentes de escravizados e estudiosos relatam a história destas pessoas e seu apagamento nos registros históricos. Apesar de ter acabado oficialmente em 1888, ainda hoje trabalhadores são resgatados de situações análogas à escravidão, onde trabalham em troca de alimento, são exploradas e deixam suas vida e saúde para enriquecimento de terceiros.

O 25 de março marca o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão. O período escravagista em Mato Grosso afetou negros e indígenas em larga escala, um legado racista que perdura até os dias atuais.

Apesar disso, a escravidão atingiu negros e indígenas de formas diferentes, conforme Priscila Scudder, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR)

“Africanos e indígenas viveram um genocídio. Contudo, houve diferença no tratamento, e elas podem ser verificadas no modo como as leis eram aplicadas aos africanos e nas formas de exploração de sua força de trabalho, ou melhor, em seu tempo de vida. Por exemplo, a escravidão de africanos era legitimada pelo tráfico transatlântico, pela empresa colonial europeia, pela ciência e pela igreja. Tanto uns, como outros, baseavam-se na ideia de que negros eram 'propriedade' vitalícia e hereditária, para auferirem lucro. Africanos e afrodescendentes foram tornados em produto/mercadoria global e promoveram a ‘acumulação primitiva de capital’”, explicou ao .

De acordo com o professor do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Bruno Rodrigues, porém, a escravidão causou uma redução massiva da população indígena em todo o território brasileiro.

“Os bandeirantes paulistas que chegaram em Mato Grosso estavam em busca também de indígenas. A endemonização da cultura indígena, por exemplo, era uma forma de embasar uma guerra, que depois resultava no aprisionamento e escravização dos capturados. No período colonial essas guerras eram conhecidas como ‘guerras justas’. Diante desse cenário, existe um impacto direto no extermínio ou redução drástica dos povos indígenas”, esclareceu.

Hoje, em Mato Grosso, descendentes de africanos escravizados se dedicam a estudar o passado e preservar a memória de seus ancestrais, embora essa história tenha sofrido um apagamento nos séculos que sucederam à abolição da escravatura.

A professora Julianne Caju conhece o legado de sua família pelo relato oral, que preserva uma parte desta história esquecida.

“Sei que sou bisneta de uma mulher escravizada porque minha mãe me contou. Segundo ela, Irene de Oliveira Lima de Souza, sua avó, Pedrosa Teixeira da Silva, morou na região do Pantanal, entre Mimoso e Barão de Melgaço. Lá, ela sempre trabalhou como cozinheira, lavadeira, empregada doméstica, puxava água na cacimba, ‘baldeando’ na cabeça, tudo isso por um prato de comida. Minha mãe foi enfática: ‘Sua avó, Maisa Teixeira de Oliveira, também repetiu isso. Não tinha salário, só recebia alimento’”, contou.

“A vida da minha mãe não foi diferente: aos 7 anos, deixou sua família para trabalhar com famílias ricas, providas do privilégio da branquitude. Ou seja, minha mãe não teve infância, porque repetiu a vida das suas ancestrais”, acrescentou.

A história da família de Caju, que também é jornalista e pesquisadora do Programa de Estudos de Cultura Contemporânea (PPGECCO) da UFMT, mostra como as formas de opressão são transmitidas de geração para geração.

“A escravidão não reconhecia negros como gente. Logo, não podiam conviver com seus familiares, muito menos ter uma casa. A violência do período escravocrata dificultou os registros históricos das pessoas que foram escravizadas. O desenraizamento e a migração contribuíram para o apagamento das genealogias”, disse.

 

Mais do que a genealogia, a cultura, o modo de vida, a religião dos escravizados também foi apagada.

Para Caju, o caminho para preservar essa memória é por meio da consciência e letramento racial.

“Preservar a memória é conhecer o passado, buscar informações, ir atrás de narrativas que rompam com a visão distorcida que sempre associou o povo negro a coisas ruins, indignas, inferiores. Lembro sempre de uma frase do fotógrafo Januário Garcia: ‘Existe uma história do povo negro sem o Brasil; mas não existe uma história do Brasil sem o povo negro’”, disse.

De acordo com os dados do Censo de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a parcela da população mato-grossense que se declara preto ou pardo é de 56%. Para Bruno Rodrigues, esta maioria negra é resultado de um estado que se originou da economia mineira, que dependia do trabalho escravo.

Segundo ele, o peso desse passado escravagista reflete nas desigualdades enfrentadas pela população negra no presente. São quase 400 anos de escravidão que mantém suas cicatrizes naqueles que descendem deste passado.

“Apesar da escravidão ter sido abolida em 1888, a população negra em sua grande maioria segue excluída dos melhores postos de trabalho, melhores níveis educacionais, habitações, cultura, entre outros”, explicou o professor da UFMT.

 

Tereza de Benguela e o apagamento da história negra em MT

Tereza de Benguela, também conhecida como Rainha Tereza, viveu a experiência de liberdade durante a escravidão no Brasil. Ela liderou o Quilombo do Quariterê (ou Quilombo do Piolho), que ficava às margens do rio Guaporé, em Vila Bela da Santíssima Trindade (521 km a oeste de Cuiabá). Segundo documentos, o quilombo de Tereza chegou a abrigar mais de 100 pessoas, entre negros e indígenas.

Ela se tornou símbolo nacional de resistência e luta contra a colonização e fonte de inspiração para as mulheres negras. O dia 25 de julho celebra o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, e ela também chegou a ser homenageada na Sapucaí, em 1994, pela Unidos do Viradouro.

“Tereza de Benguela implantou no Quilombo do Quariterê a primeira experiência de sistema de governo coletivo em Mato Grosso, organizou a produção agrícola e o comércio com as vilas próximas, ou seja, desenvolveu a produção de alimentos. A liderança de Tereza de Benguela explicita o papel de destaque da mulher entre africanos e afrodescendentes, coisa que o machismo eurocentrado, a sociedade patriarcal, procura esconder.”, lembrou a professora Priscila Scudder.

O conversou com Silviane Lopes, quilombola, doutora em Sociologia e descendente direta da Rainha Tereza.

Silviane conta que em 1994, ano da homenagem no Carnaval carioca, como um momento importante na popularização da história de Tereza, ainda muito ignorada na historiografia brasileira.

"A maior inspiração que Tereza nos deixa é a (r)existência em um lugar que buscava liberdade e governança horizontal. Uma promotora de gente ajuntada que garantia a liberdade de muitas outras tantas”, afirma.

O desconhecimento da história de Tereza de Benguela é mais um exemplo de como essa trajetória negra foi se perdendo no tempo.

“A oralidade sobre Tereza revela a grande mulher que foi e que a história oficial tentou matar e apagar”, completa Silviane Lopes.

 

Carta Magna do Ceará

O dia 25 de março é uma data importante para o Brasil. Neste dia, em 1884, o Ceará foi pioneiro na abolição da escravidão - foi o primeiro estado brasileiro a fazê-lo -, decreto que ficou conhecido como a Carta Magna do Ceará.

Em Mato Grosso, a escravidão só foi abolida oficialmente com a Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888.

Segundo Priscila Scudder, além do Ceará ter adotado mais fortemente a pecuária e agricultura de subsistência, jornais abolicionistas da época ajudaram a moldar a opinião pública contra o modelo escravista.

“No Ceará ocorreu um movimento importante em 1881, qual seja, os jangadeiros do Porto de Fortaleza, liderados por Francisco José do Nascimento (o Dragão do Mar), se recusaram a transportar escravizados, paralisando o tráfico negreiro para o estado”, ela relata. Este movimento já antecipava o tom de um estado de espírito geral contrário à escravidão.

No caso de Mato Grosso, a professora da UFR argumenta que a economia do estado, baseada em uma herança colonial, enxergava na escravidão o modelo ideal. Ela ainda diz que esse “modus operandi” econômico se estende até hoje.

“A economia de Mato Grosso sempre se baseou no tripé da economia colonial: grandes latifúndios, agricultura de exportação e uso intensivo de mão de obra barata e mesmo escravizada”, completa.

 

A escravidão no presente

Evidentemente, a escravidão, nos moldes estudados na história do Brasil, não existe mais. Contudo, é impossível dizer que este cenário é coisa exclusiva do passado.

Em 2022, conforme dados divulgados pelo Ministério do Trabalho e Previdência, 33 trabalhadores foram resgatados em situação análoga à escravidão em Mato Grosso, um aumento de 80% em comparação com 2021.

O Ministério do Trabalho e Emprego mantém a “Lista Suja”, um documento cataloga empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à escravidão. A lista pode ser acessada aqui.

De acordo com o professor Bruno Rodrigues, porém, as dinâmicas dessa escravidão “nova” se assemelham com o período pré-1888, isto é, se baseava na vulnerabilidade dos oprimidos.

“É preciso também identificar as minúcias dos lugares onde ocorrem trabalho análogo à escravidão: geralmente em locais afastados dos olhos da fiscalização, em espaços rurais, com a contratação de migrantes estrangeiros ou brasileiros que fogem da extrema pobreza. Entre não ter nada e alguma coisa, e diante da falta de instrução, essas pessoas acabam sendo seduzidas a esses lugares, e neles dão o próprio sangue para gerar riquezas para outrem”, explicou.

Scudder ainda argumenta que a desumanização é um “continuum” histórico, presente até hoje, e a luta de povos indígenas pela demarcação de seus territórios originários - tema muito presente no interior mato-grossense - mostram como estas questões perpassam os problemas presentes da sociedade brasileira.

 

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