Nas vilas e pequenas cidades do interior do Brasil de outrora, quase todo mundo tinha um apelido; na maioria das vezes, eram apelidos carinhosos, dados pelos próprios familiares, por amigos e vizinhos – mas, também havia aqueles degradantes, danosos, dados por algum desafeto. Nesta última classe de apelidos, os piores eram aqueles demolidores da paciência do alcunhado, mas, ao mesmo tempo, engraçados: Oreia de Gamela, Venta de Fole, Pescoço de Ema, Boca Larga, Bicudo, Barriga de Égua, Perneta, Mancueba, Mucura, Cara de Coruja, Pé de Papagaio; a lista é grande, sempre destacando uma característica física ou algum defeito, que o sujeito nunca queria lembrar que o tinha. Eram apelidos ditos na surdina, pois, se ficasse sabendo: dava briga, na certa...
Mas, os apelidos também tinham e, ainda têm, um caráter político; foram e ainda são utilizados pelos sem-poder, pelos simples e humilhados, como forma de se vingarem dos poderosos de todo tipo, dos políticos, valentões e arrogantes; cujo prazer de dizê-los, multiplicava-se quando o poderoso ficava sabendo da gozação, e demonstrava desgosto, raiva, e gritava ameaças: aí, é que o apelido pegava mesmo!
Lembro de um morador antigo de uma daquelas nossas cidadezinhas sertanejas, cujo nome de batismo era Manoel; mas, como no sertão ninguém se dava ao luxo de dobrar a língua para pronunciar o “L”, Manoel era ou Manéli ou Mané. Por um de suas características físicas, seu apelido, indizível, era Mané-Pescoço; obviamente, ninguém o chamava por aquela alcunha. Ele era um sujeito gracejador, mas, para aqueles ermos cujo amparo certo era só o de Deus-Pai, tinha um grande defeito: ser e se assumir como ateu; que o fazia ainda mais antipático, por mangar de quem professava sua fé, especialmente os católicos – a quase totalidade dos que viviam ali, naquele tempo...
Cento dia, já noitinha, depois do jantar, como era de costume as pessoas se sentarem à porta, na calçada, para uma boa conversa com vizinhos e responder os “Boa Noite” de quem passava, Mané-Pescoço sentara à porta em sua cadeira tipo preguiçosa. Céu bonito, de verão amazônico, quando não chove e quase não se vê nuvens; de um jeito, que o Céu noturno se fazia tão singular, que as estrelas pareciam brilhar bem perto de nossas cabeças. Ele ali, a olhar a noite, sem acreditar em Deus; mas, certamente em sua cabeça de poucos estudos, a se perguntar como tudo aquilo se fizera: ah, os ateus se correm de dúvidas, também...
Perdido em pensamentos, foi chamado à realidade da rua por duas senhoras conhecidas, que iam à Missa; que, ao passarem em frente sua casa, cumprimentaram-no simpaticamente – mas, provocando-o em seu ateísmo:
- Boa Noite, seu Mané; vamo pra Missa?
- Boa Noite! Vô não... Ele respondeu, perguntando em seguida, mais provocador, implicante e debochado:
- Hein! Esse Deus de vocês, ele é branco ou é preto?
- Seu Mané, Ele num é, nem branco, nem preto! Mas, também, num tem um pescoço tão cumprido cuma o do sinhô!
Mané-Pescoço engoliu em seco. Ele sabia que tinha aquele apelido, mas ninguém nunca jogara-lho, assim, na cara! Levantou-se e entrou na casa, praguejando em pensamento as mulheres, sem ter ou saber o que dizer às mulheres, em resposta àquela ofensa: elas o haviam ferido no mais profundo do seu ego. Voltou à porta, vendo-as desaparecerem na rua, distante já. Elas seguiram o caminho felizes, bendizendo a oportunidade que tiveram de contestar o seu ateísmo, ferindo-o onde mais ele podia sentir; seguiram, comentando entre si, rindo da situação...
O que mais o avexava, era saber que aquilo não ficaria ali, que aquelas mulheres iriam comentar com todo mundo o ocorrido: iriam dizer que o chamaram de Mané-Pescoço, e que ele ficou “caladinho”, sem dizer, nem fazer nada contra elas. Todo mundo ia comentar e rir dele...
De fato, antes de a Missa começar, todos os que tinham ido à Igreja já sabiam do ocorrido. Era só risada: todos admirados da sagacidade das mulheres, e perguntando mais uma vez como tinha sido o caso, e riam, riso solto. No dia seguinte, antes do meio- dia, todo mundo sabia e comentava o fato. Mané-Pescoço saiu a rua com cara fechada e sem cumprimentar ninguém, imaginando os comentários das pessoas ao passar. Diz-se que ele guardou ódio mortal por aquelas mulheres, de um jeito que nunca mais lhes dirigiu a palavra; nem elas tiveram coragem para o cumprimentar mais...
*Prof. Dr. Elismar Bezerra Arruda é professor na rede pública de ensino
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