Vi, dias atrás, umas figuras impúberes fazendo loas à Ditadura Militar; inclusive, algumas delas tinham reproduzido mensagens nas redes digitais, num movimento jumento de boicote ao filme “Ainda Estou Aqui”. Perguntei-lhes sobre o que sabiam daquele tempo, para além do que viram nas postagens dos grupos que participavam nas redes digitais, se tinham lido livros e de quem; em seguida, ante o silêncio raivoso, o que sabiam do ex-deputado Rubens Paiva e do que sofrera ele e toda a sua família, etc. Tomaram minhas indagações como provocação. Disseram um monte de frases desconexas sobre o Comunismo, que tinha que ser destruído por qualquer meio etc., que o ex-deputado era comunista; e, por fim, que graças à Ditadura, o Brasil não virara comunista. Ou seja, nada sabiam. O ignorante age assim, porque sabe que a gente pergunta sabendo que ele não tem conhecimento sobre o fato, só informação abstrata, superficial, que nem sempre consegue expressar; então, nu, fica tomado pelo ódio.
Vivemos acossados pela ignorância-militante: que é a tentativa da jumentice se impor, por meio de uma quantidade imensa de jumentices, como se sabedoria fosse. Dizia-me uma amiga professora: “Joguei a toalha: não discuto com essa gente. Se possível não os ouço, quando não é possível não os ouvir, faço ouvidos moucos, digo-lhes alguma piada, que sei que eles não entenderão, e os deixo roendo-se de raiva”. Não penso assim. Gosto de Rosa de Luxemburgo, a revolucionária, a nos ensinar que os problemas da democracia, resolve-se com mais democracia”: combatamos a ignorância com doses cavalares de conhecimentos. Já o disse, repito: não é possível saber sem estudar. A ignorância-militante, que é um movimento político de negação à vida, deve ser ridicularizada, apresentando-lhe o conhecimento como se um espelho – em que se veja no seu revés...
Muitas das perversidades cometidas pela Ditadura no cotidiano da vida de gente que nem militante político era, as pessoas nem imaginam. Como a militarização do Povo Indígena Cajá, criando a Polícia Carajá; cujos “policiais”, cometeram atrocidades contra seus iguais, todas aprendidas e incentivadas pelos chefes não-indígenas que os de-formaram. Vi uma dessas, ao lado da nossa casa, quando um grupo de policiais Carajá manietou outro indígena, amarrando-lhes os pulsos com uma corda fina de nylon. Marcou-me, a força com que o amarravam, fazendo a corda entrar em suas carnes. Marcou-me o silêncio lúgubre dos policias e da vítima, cortado apenas por fungados de dor e raiva, talvez. Minha Mãe mandou-me entrar, e não vi como e pra onde o levam...
Dos ignorantes-militantes que conheço, nenhum aguentaria um trisco de tempo sob aquela tortura. Só a ignorância revestida da arrogância de não saber, e se afigurar sabedora do que sabe que não sabe, pode achar positividades no fato de um grupo de iguais submeter todo um povo, todo um País, às suas vontades e interesses. As ditaduras materializam a negação da vida às maiorias, mediante as mais absurdas violências, em favor de determinada economia controlada e para o interesse de uns poucos; os militares eram instrumentos desses poucos – como aqueles policiais-indígenas eram destes. Sim, todas as ditaduras têm uma razão econômica, inclusive a Ditadura do Proletariado; mas, aí, a significância é outra!
As polícias todas naquela região, sob a Ditadura, pareciam ter fixação pelos pobres peões-do-trecho: maltratavam-nos impiedosamente, como se não fossem gente. Todas as grandes fazendas “abertas”, formadas, naquele então, que demonstram tanta opulência, riqueza e produtividade hoje, todas, devem muito aos indigentes Peões-do-trecho. Era uma gente desgarrada de suas famílias, por diversos motivos, desde uma briga terminada em morte, até o acossamento do latifúndio na seca nordestina, que os fizeram “arribar” Brasil a dentro, até ali. As polícias os maltratavam, em muito porque sabiam que, além dos Padres da Prelazia, não havia ninguém por aquela gente.
Os Peões-do-Trecho eram uma enciclopédia de histórias diversas, cujos fatos, foram tecidos e constituíam as tramas interessantes do ser de muitos daqueles lugares; que se perderam no correr dos dias urbanizados, a corroer o Sertão. Conheci um desses brasileiros sem nome, que trabalhava mais que burro-de-carga...
O Baianinho Vôte era uma pessoa mirrada, preto retinto, que se empregava nas fazendas, fazendo a comida, a “boia” para a peãozada que trabalhava na juquira: derrubada da mata e preparação de grandes áreas para o plantio de capim pro gado. Era uma pessoa amável. Sempre que chegava das fazendas ia lá em casa, cumprimentar-nos. Gosta dos meus pais. Minha Mãe sempre a lhe dar conselhos, especialmente para não gastar tudo o que recebera com cachaça – conselho inútil...
O Vôte, como todos os demais Peões-do-trecho, ficava “alongado” nas fazendas por períodos de, no mínimo, seis meses; então, recebia o saldo – depois de todas as explorações do Gato e do dono da birosca, que lhe vendia as mercadorias para o “comer” – e vinham para a cidade. Todo o dinheiro que tinha, ficava à mostra nos seus bolsos da calça de tergal, ou coringa (o jeans daquele então); gastava-o até o último centavo: com alguma roupa nova, corte de cabelo, às vezes um sapato, mas, a maior parte, com cachaça. Era como se se vingasse de uma tristeza que não o abandonava nunca, e que se avivava quando chegava na cidade.
Nunca vi, nem soube, que o Baianinho Vôte tenha falado de si pra alguém. Dizia-se que havia matado alguém lá na sua Bahia; mas, não se sabe se é verdade ou história inventada. O certo é que ele havia estudado, porque nos perguntava sobre verbos, pronomes, adjetivos, e sobre o corpo humano, o nome científico dos órgãos, sobre nossos acidentes geográficos, os relevos mais destacados da Terra, etc. Passávamos hora escutando o Baianinho, quando ele ainda não estava muito embriagado. Bêbado, dormia em qualquer lugar, numa calçada alta de algum bar, ali mesmo em casa numa cadeira de fio, com encosto longo...
De nada, ele reclamava. Bebia e conversava. Nunca ouvi dizer que houvesse brigado com alguém, nem caçado encrenca. Bebia.
Nunca soube seu nome. O diminutivo na alcunha, devia-se àquela estatura; e o “Vôte”, era porque sempre usava aquela expressão no seu falar: incorporou-se ao apelido, que era carinhoso até. Penso, tantos anos depois, que ele queria ter estudado mais, quem sabe ter ajudado algum filho do qual nunca falou, a estudar, virar doutor: porque sempre nos incentivava a estudar. “– É preciso es-tu-dar!” Dizia-nos, separando as sílabas, para acentuar aquele conselho. “– Vôte, ter que ficar como eu: na juquira! Obedeçam sempre, seus Pais!”
Vim estudar, e nunca mais vi o Baianinho. Tempos depois, quando fui em casa, de férias, perguntei sobre ele, disseram-me que havia morrido. Descansou. Aqui, na Terra, especialmente nestes tempos do Agronegócio, ninguém sabe nem tem necessidade de identificar o lugar da sepultura do Baianinho. Era um sem nome. Mas, seu suor e todas as suas dores, sentidas nos seus silêncios de ser sozinho, está entranhado no capital dos grandes empreendimentos do Agronegócio, que ajudou a formar.
Acredito que as almas, como a do Baianinho Vôte, são as que mais agradem Deus, em seus dias siderais; são as com que Nossa Senhora, gosta mais de conversar, sem pressa e se rindo muito. Amém!
*Prof. Dr. Elismar Bezerra Arruda é professor na rede pública de ensino
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