Foi em junho de 1986, no gabinete do presidente José Sarney, que ele, num gesto simbólico, entregou à atriz Fernada Torres a Palma de Ouro de melhor interpretação no Festival de Cannes ao qual a estrela de Eu sei que vou te amar não pôde comparecer. Às vésperas da tramitação da Lei Sarney, moldada para incentivos fiscais da Cultura, ao Correio, Fernanda brincou: "Com essa lei eu não vou mais ter medo do desemprego". Na ocasião, em que o cineasta Arnaldo Jabor celebrou o viés de "reforma agrária da cultura", torcendo pela instauração de "uma cultura perigosa, provocativa", Sarney completou que só faltava o país vencer a Copa (de 1986).
Quase 40 anos depois, o clima no Brasil tem equivalente ao de Copa: na próxima quinta, há a possibilidade de Fernanda Torres (de Ainda estou aqui) conquistar uma indicação ao Oscar de melhor atriz (depois de vencer o Globo de Ouro), seguindo o caminho da mãe Fernanda Montenegro (indicada por Central do Brasil).
Com muito da carreira consolidada — em participações junto a filmes do irmão Cláudio Torres, como A mulher invisível (2009) e Redentor (2004), além de prolongamentos na telona de sucessos da tevê como Os normais (1 e 2) —, Fernanda Torres está novamente nos cinemas em filme de Walter Salles, codiretor (com Daniela Thomas) de O primeiro dia (1998), em que ela deu vida à solitária Maria, que aguardava o estouro dos fogos de artifício no último dia do ano.
No filme atual, Ainda estou aqui, Fernanda assume o peso de uma revisão da ditadura, tema caro ao momento tal qual aqueles de filmes marcantes, do passado, como Kuarup (que tratava de religião e indigenismo, baseado em Antonio Callado, e conduzido por Ruy Guerra) e Capitalismo selvagem (sátira em que brotaram temas como investigação jornalística e respeito à natureza). Celebrada nacionalmente, Fernanda Torres — que esteve no documentário de Domingos Oliveira sobre o fazer arte, Os 8 magníficos (2020), ao lado de Wagner Moura, Mateus Solano e Alexandre Nero — está a um passo do Oscar.
Outros momentos gloriosos de Fernanda em campo
Inocência (1983)
Um pai opressor (Sebastião Vasconcelos), em fins do século 19, numa atmosfera rural, puxa a trama baseada em romance de Visconde de Taunay (adaptado por roteiro de Lima Barreto). No sertão, o amor platônico e pueril do médico Cirino (Edson Celulari) se fortalece junto à paciente Inocência (Fernanda Torres). No Festival de Brasília, venceu prêmios de direção (Walter Lima Jr.), fotografia e ator coadjuvante (Vasconcelos).
A marvada carne (1985)
Ganhador de 12 prêmios no Festival de Gramado, mostra Nhô Quim (Adilson Barros) na tentativa de matar dois coelhos numa cajadada só: quer casar e, finalmente, provar carne bovina. Tendo um boi por dote, a caipira Carula, pretendente dele, por outro lado, reivindica mais do que Santo Antônio pode dar. Nutrido pelo humor de Cornélio Pires, o diretor André Klotzel, se apoiou até em Os parceiros do Rio Bonito (de Antonio Candido) para a criação.
Com licença, eu vou à luta (1986)
Desafiar a autoridade do pai, militar, e da impositiva mãe (Marieta Severo) está no destino da suburbana carioca que protagoniza o longa do estreante Lui Farias. Numa queda de barreiras em costumes a jovem (Torres) pretende levar adiante a relação com um homem desquitado. Baseado em autobiografia de Eliane Maciel, tem Carlos Augusto Strazzer no elenco.
Eu sei que vou te amar (1986)
O pernúncio vem numa poesia de Chacal: "Nosso amor puro pulou o muro". Num embate verborrágico com o personagem de Thales Pan Chacon, Torres desconstrói e realimenta um amor, a todo momento. Premiada em Cannes, a atriz torna inesquecíveis os discursos sobre almofadas chinesas, um uso inesperado de batom, as vantagens da amamentação e, não se enverga, às expectativas de um amor tenaz. É hilária a definição da vocação de "toda a mulher brasileira", neste filme de Arnaldo Jabor.
O beijo 2348/72 (1990)
Um dos últimos longas propiciados pela Embrafilme, a comédia de Walter Rogério parte de um caso real (de 1972) julgado pelo Tribunal Superior do Trabalho: dado no horário de trabalho, um beijo numa fábrica, gera justa causa para a demissão de Norival (Chiquinho Brandão, premiado com Candango de melhor ator). Na trama que traz Maitê Proença e um humor singelo, Torres vive Claudete, algo desprezada pelo protagonista. Venceu como melhor filme no Festival de Brasília.
Terra estrangeira (1995)
Com domínio de apenas 3,7% do mercado nacional de bilheteria, o momento da vida real refletia o que estava na tela, neste filme de Walter Salles e Daniela Thomas. No ano de 1995, apenas 12 fitas nacionais disputaram atenção frente a 222 estrangeiros. Na tela, desfalques da política de Collor, em 1990, se relacionam ao encontro do aspirante a ator Paco e a atendente de restaurante lisboeta Alex (Torres), no longa com toques policiais e contrabando até mesmo de amor.
O judeu (1996)
O coadjuvante José Lewgoy e o filme, de produção complicada (atravessou oito anos para finalização), se viram premiados no Festival de Brasília. O diretor Jom Tob Azulay escalou Felipe Pinheiro (morto em 1993) como protagonista, na pele de personagem inspirado em António José da Silva, advogado, poeta e teatrólogo. Na trama, que versa sobre a inquisição, Fernanda Torres desponta como a moça que acusa cristãos de adorarem "santos, de paus e de pedras", demonstra a inclinação de algumas mulheres "para a santidade", mas se vê encurralada por grave denúncia.
O que é isso, companheiro? (1997)
Finalista brasileiro no Oscar, o filme de Bruno Barreto é baseado em livro de Fernando Gabeira e traz fatos do setembro de 1969, quando do sequestro político do embaixador Charles Elbrick (Alan Arkin). Torres dá vida à lutadora Maria Augusta Ribeiro.
Traição (1998)
De três crônicas de Nelson Rodrigues, os diretores Arthur Fontes, Claudio Torres e José Henrique Fonseca extraíram o sumo do filme coletivo. Fernanda aparece em O primeiro pecado e Diabólica; no primeiro, contracena com Pedro Cardoso, na pele de Irene, uma espécie de "troféu" para as conversas do amante Mário; já no outro, é a irmã dona de ciúmes desmedidos.
Gêmeas (1999)
Partindo de conto extraído de A vida como ela é (de Nelson Rodrigues), Andrucha Waddington repassa o sombrio peso de enredo de irmãs, uma costureira; outra, bióloga, que se revezam, sabotando casinhos e reais amores. Prêmio de melhor atriz (Torres) e do júri popular, no Festival de Brasília.
Casa de areia (2005)
Num dueto com Fernanda Montenegro, Torres dá vida à Áurea, numa trama que atravessa 60 anos e é conduzida pelo diretor Andrucha Waddington. Um clima onírico e de desolação impregna as trajetórias de mulheres que desafiam a precariedade da vida no desértico ambiente dos Lençóis Maranhenses. Na cena final, Montenegro brilha ao corporificar a queda da vaidade humana diante da finitude da vida.
Saneamento básico, o filme (2007)
Rodado em Bento Gonçalves (RS), por Jorge Furtado, desvenda a hilária alocação de verbas governamentais, numa trilha muito inesperada, quando uma comunidade necessita de tratamento para o esgoto local. Na pele de Marina, Torres dá um show, com timing inspirado, balizando, com esperteza, o contato de um grupo ignaro com a gramática do audiovisual.
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