Termina na sexta-feira (13) o prazo para a consulta pública da versão preliminar do novo Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado (PPCerrado). O documento é lançado na esteira de um compromisso do governo federal para zerar o desmatamento até 2030. O destaque é para o desmatamento ilegal, mas um grande problema no Cerrado é a destruição da vegetação amparada pela lei. Para especialistas consultados pelo Observatório do Clima, o PPCerrado é fraco contra a devastação desenfreada autorizada. Faltam revisões para autorizações de desmatamento e detalhes sobre a articulação com os estados, por exemplo.
Segundo Ana Carolina Crisóstomo, especialista em conservação da WWF-Brasil, dar ênfase ao ilegal no Cerrado é preocupante porque um imóvel rural tem a obrigação de manter somente 20% da vegetação nativa como Reserva Legal. Se a propriedade estiver no território da Amazônia Legal, mas com vegetação ainda com características de cerrado, o percentual de preservação aumenta somente para 35%. No bioma da Amazônia, 80% da vegetação nativa precisa ser preservada nos imóveis rurais.
“Em termos de pontos fracos [do PPCerrado, um deles] é o desmatamento ilegal zero pensando na compensação do desmatamento que pode ser autorizado. Isso é muito preocupante porque o Cerrado é um bioma pouco protegido que está como uma taxa de desmatamento aceleradíssima”, comenta Crisóstomo.
O Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro. Ele ocupa 23,3% do território e possui diferentes tipos de vegetação, como áreas campestres, savânicas e florestais. Menos famoso do que a Amazônia, o bioma também é importante para o clima e para a manutenção da água, inclusive na floresta ao norte. Grandes aquíferos – Guarani, Urucuia e Bambuí – estão no Cerrado. Afluentes das bacias hidrográficas amazônica, do Tocantins-Araguaia, Meio-Norte, Parnaíba, São Francisco, Paraná, Pantanal e parte da bacia do Atlântico Leste nascem no bioma.
Entre 2019 e 2022, a destruição da vegetação nativa no Cerrado representou mais de 40% de todo o desmatamento no país. No ano passado, a vegetação natural primária correspondia a somente 47% do bioma, sendo que as áreas de pastagem e agricultura somavam 30% e 15%, respectivamente, aponta o documento do PPCerrado.
De acordo com dados do sistema Deter-B, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), em setembro o Cerrado teve uma alta de 149% no desmatamento em comparação com o mesmo mês do ano passado. Já o acumulado de janeiro a setembro teve um salto de 27% comparado com o mesmo período de 2022. O Deter é um sistema de alerta que aponta as tendências de desmatamento. “A gente está em um momento no Cerrado em que não dá para errar, não dá para demorar”, diz Yuri Salmona, diretor-executivo do Instituto Cerrados.
O atual documento é para a implementação da 4ª fase do PPCerrado. A anterior foi revogada em 2019 pela gestão do então presidente Jair Bolsonaro (PL). Entre 2012 e 2013, durante o governo de Dilma Rousseff (PT), o PPCerrado também foi interrompido.
Além da dificuldade para mudar o rumo do desmatamento autorizado, especialistas também destacam como pontos negativos da versão em consulta a falta de metas, prazos, metodologia e informações detalhadas sobre orçamento para implementar as ações. Também foi criticada a falta de especificação para atividades em diferentes áreas do Cerrado.
De acordo com Gabriela Savian, diretora adjunta de políticas públicas do Ipam, o plano traz informações gerais sobre desmatamento e queimadas, mas o Cerrado tem dinâmicas distintas. “Tem realidades diferentes no Mato Grosso, Goiás, na região mais do Sudeste, no Matopiba [Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia]. A gente tem ali [PPCerrado] uma visão mais macro. Talvez a priorização ou a diferenciação das regiões dentro do bioma pudesse ser uma forma de trabalhar melhor as realidades”, comenta.
Segundo o governo federal, o PPCerrado foi produzido com base na experiência das três fases anteriores, dos Planos de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), que está na 5ª fase, e de reuniões com estados que compõem o bioma.
A 4ª fase do PPCerrado tem quatro eixos e 12 objetivos. Confira abaixo:
Segundo o documento, a conciliação da produção econômica com a conservação ambiental é o principal desafio dos PPCDs. No entanto, há ambição de estimular atividades agropecuárias sustentáveis. É argumentado, por exemplo, que, diante do fato de o desmatamento ser autorizado em até 80% das áreas das propriedades, existe a necessidade de acordos estilo “ganha-ganha”. A medida seria importante para a proteção do bioma e a manutenção da posição do Brasil no comércio global, aponta o documento. Então, é proposto o desenvolvimento de uma avaliação ambiental estratégica para identificar e recomendar o ponto de equilíbrio ideal entre a expansão e a consolidação da fronteira agropecuária no Matopiba e a conservação do Cerrado em uma extensão que garanta a capacidade de suporte hídrico, climática e de biodiversidade. Tudo de acordo com a meta de desmatamento zero.
Isabel Figueiredo, pesquisadora do ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza), comenta que o MMA apoiar uma avaliação ambiental estratégica no Cerrado é interessante, mas a proposta é muito vaga. “O quanto isso é viável?”, questiona. Já Margareth Maia, diretora do Instituto Mãos da Terra (Imaterra), argumenta que o Cerrado tem um cenário político complicado para que uma avaliação seja posta em prática. “A gente precisa de uma política extremamente forte, uma democracia participativa robusta para que instrumentos dessa natureza sejam de fato postos em prática. Senão é só mais um documento para legitimar as irregularidades que já existem e, se ele ficar bom, como já vi em alguns casos, ser engavetado”, comenta.
No segundo eixo é reconhecido que a proporção de áreas desmatadas ilegalmente, em relação ao total, é menor no Cerrado por causa da legislação menos protetiva em comparação com a Amazônia. No entanto, repete a dedicação para combater o que é considerado ilegal. “Estima-se que pelo menos metade do desmatamento no bioma ocorra sem autorização. Portanto, o controle ambiental – por meio de planejamento e implementação de ações de caráter repressivo – é ação basilar para prevenir, coibir e desmotivar esse avanço”, diz o documento.
O eixo 2 também reconhece que há uma quantidade relevante de emissão de Autorizações de Supressão de Vegetação (ASVs) e de Uso Alternativo do Solo (UASs) liberadas pelos estados e, possivelmente, irregular. Além disso, destaca que o Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais (Sinaflor), ferramenta que integra as ASVs e UASs, e o Sistema de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) são frágeis e necessitam de esforços para fortalecer a integração dos seus dados.
Reconhecer os problemas dos sistemas é visto como algo positivo pelos especialistas, assim como a proposta de monitorar melhor a liberação de novas autorizações. “Então, o governo está olhando para isso, está interessado em fazer com que ele [Sinaflor] passe a ser eficiente e que tenha critérios mínimos”, diz Yuri Salmona.
No entanto, a crítica é referente a falta de uma proposta para rever o que já foi autorizado. “Acho que faltou ousadia para propor um desmatamento zero no mínimo em algumas áreas mais críticas, além de rever as autorizações concedidas, fazer uma auditoria pelo menos em algumas áreas do Matopiba”, defende Margareth Maia.
O terceiro eixo traz pontos positivos como a destinação de terras públicas e o aprimoramento para o controle de informações fundiárias. Já entre as propostas do quarto eixo é sinalizada a necessidade de melhor qualificar, monitorar e compensar o desmatamento autorizado, o que deixa dúvidas sobre como e onde poderão ocorrer compensações. “Fiquei tentando entender como. Compensar como, com qual instrumento?”, questiona Margareth Maia.
A consulta pública recebeu 27 sugestões até esta segunda-feira (9).
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