As manhãzinhas sertanejas tinham cheiro de fogão de lenha, de café e de banha de porco fritando alguma coisa; o café da manhã, quebra-jejum, era todo feito com as coisas cultivadas ali mesmo, nos quintais e nas roças-de-toco: ovos fritos e cozidos, bolos fritos e assados, algum pão, farofa de carne-seca, café, leite e chá – de fruta, quase nada, alguma banana, às vezes, porque não se tinha o costume comê-las, cedinho.
A comida precisava dar sustança para a lida, um trabalho duro, feito no braço, manualmente, sem máquinas e o instrumental tecnológico que se tem agora. Uma roça levava muito tempo para ser preparada e plantada; toda feita com machado, foice, facão e enxada, carecia de muitos braços para fazer o serviço, daí os casais terem muitos filhos: uma precisão...
Nossos pais acordavam muito cedo, porque seria uma desonra levantar da cama depois do sol nascido; de jeito que as crianças aprendiam desde muito pequenas, que, ter preguiça, desqualificava, desonrava a pessoa. Tinha-se a preguiça, como “a mãe do diabo” – um nome proibido de dizer em casa, de tão nefasto; tanto que, por muito tempo, fiquei sem entender porque certas igrejas falavam mais “nele”, que no Nosso Senhor Jesus Cristo.
O Sertão cercava-se de si, das suas crenças e moral, cimentadas por uma ética de caráter muito religioso, a exigir da gente, o tempo todo, sermos bons, corretos e solidários. Nossos pais e mães eram compadres e comadres dos pais e mães dos nossos amigos, pelo que urdiam uma rede protetiva de afeição e bem-querenças a envolver as famílias; numa ambiência em que se embalava, sob o rigor dos seus ensinamentos, uma infância respeitosa, livre e alegre – ainda que cheia de carências e perigos...
Naquele então, haviam quintais de dimensões e belezas tais, que é necessário explicar às crianças de hoje – engaioladas em apartamentos menores que as cozinhas das casas de outrora – o que eram os quintais: elas não sabem, nem imaginam, o que é ser criança numa casa, e com um quintal grande.
De fato, aqueles quintais existiam como pequenas unidades produtivas da família, onde se produzia de tudo um pouco: da mandioca aos ovos de galinha, do tomate-coração às carnes e banha de porco, do alface-manteiga e coentro à araruta e açafrão-da-terra, de flores, às ervas que curavam; além de goiaba, manga, jaca, lima, laranja, limão, cagaita, jenipapo, taturubá, amora, caju e as bananeiras, com sua beleza encantadora (que embelezaria qualquer jardim hoje); de jeito que formavam ambientes vivos e alegres, em que pipiras, xexéus, curicas, periquitos, chico-preto, rolinhas, sangue-de-boi, bem-te-vi, corrupião, canarinho e outros passarinhos se ajuntavam para comer frutos fartos, fazer ninhos e cantar...
Eram pequenas totalidades, biodiversidade de cheiros e cores e formas e sons, a formarem a grande totalidade sertaneja; ali o olhar se acalmava, enxergando e ouvindo tudo devagar, sem cansar nunca.
Os quintais estavam estranhados nas gentes, como parte do ser substanciado pelo que se fazia ali, sem as pressas dos negócios orientados pelo lucro; de fato, o ambiente sertanejo não se desenvolvia favorável aos negócios, às espertezas de comprar por um, na necessidade extrema do vendedor, para vender por dois ou três, auferindo um lucro injusto e, a rigor, desonesto....
Daí que nas vilas e cidadezinhas, as vendas e quitandas e armazéns não vendiam hortaliças, nem frangos, nem ovos, nem frutas: isto é, nada do que se produzia nos quintais, vendiam. Vendiam tecidos (roupa feita, prêt a porter, não), querosene, agulha e linha pra costura, botões e zíper, chapéus de palha e panamá, linha de pesca e anzol, facão, machado, foice, serrote e formão, chumbo, espoleta e enxada.
Então, o modo de ser e viver do Sertão se arrastava sem novidades – vivia-se como se a vida se desenvolvesse para trabalhar para o conforto da comida, da vestimenta, do abrigo da casa, para a saúde e a felicidade dos filhos; até que chegasse a “ineludível dos povos”.
A vida se regulava por uma materialidade, cujas necessidades e os interesses de uns, não se impunham, destrutivos, às necessidades e interesses dos outros, do vizinho: era vergonhoso querer extorquir alguém, especialmente um “fraco”, para se fazer rico, ou mais rico, e poderoso. É que as condições para prover as necessidades vitais, imediatas, dos indivíduos, estavam mais ou menos horizontalizadas – de modo que não se via, mesmo nos mais “ricos”, a exibição arrogante de grandes luxos, para humilhar. Vigia uma moral de comedimentos, tendente à consideração do outro como gente, de iguais necessidades e desafios e perspectivas; tais que, sentia-se o viver como continuidade do que se fizera antes, e se desenvolveria assim, como se fosse sem fim – como toda normalidade faz crer...
A normalidade daquele Sertão, que não se orientava pela intransigência do Negócio e sua ética: o lucro, viu chegar um tempo em que foi se plenificando nas entranhas daquelas terras, a desnecessidade de fazer o que sempre se fazia, desde a comida ao sabão, quando se impôs o conforto de ter a coisa pronta.
A alegria do reunir-se para aqueles fazeres, inclusive na Casa-de-Farinha pra fazer farinha de mandioca, foi sendo afigurado pelo Negócio como contraproducente, perda de tempo – dado que os recém-inaugurados supermercados, tudo ofertava: pronto, disponível.
Os olhos sertanejos começaram a olhar insistentemente para aquelas farturas, olhos compridos, de desejos e precisão, ante a falta da condição para adquiri-las; foi quando o Negócio lhes apontou a desnecessidade daqueles quintais. Então, eles se enlutaram de tristezas e abandonos...
Assim, convencidos, começaram a retalhar os quintais, transformando as “excedências” em pequenos lotes, que foram sendo vendidos um a um, até restar apenas o espaço da casa, espremida entre outras casas sem quintais. A necessidade de atender as novas necessidades e interesses ofertados pelo Negócio, extinguiu a antiga e gostosa ambiência: os espaços e o tempo das plantas e bichos e frutos e cantos; inaugurando-se um outro tempo, de silêncio de pássaros, de noites sem céus de estrelas e lua, sem os causos no terreiro, sem o fogão à lenha na cozinha, tornada branca, sem gosto e sem cheiro.
Naturalizada, ninguém chorou aquela situação, até que o dinheiro arrecadado com a venda terminou; foi quando o onipresente Negócio lhes propôs trabalho assalariado; e pai e mãe e filhos foram arrancados de casa, e enfurnados o dia inteiro num trabalho, cujo ganho, não lhes permitiu comprar as condições para viver como outrora. Ali, mais que entenderem, sentiram, o seu tempo, a alma e a calma sertanejos subtraídos – eis que, assim, o Sertão conheceu em vida, o inferno que tanto temia no pós-morte.
A velha normalidade foi-se subsumindo nas necessidades e interesses dominantes: dos donos da economia, das grandes fazendas, dos grandes negócios agropecuários, “tocados” a ferro e fogo (com apoio de polícia e juiz) por uma gente-proprietária estranha, de pele de lua, vindas dos lugares desenvolvidos, onde nunca o sol lhes queimara o rosto, nem a madeira do machado e da enxada lhes calejara as mãos – mas sabiam tudo sobre negócios.
Daí mudou o tempo, os ambientes se carregaram de um falar-imperativo, de donos, duro, intransigente e convincente, sempre a destacar e caracterizar o Sertão e sua gente com atraso e indolência; confrontando e suplantando seus antigos referenciais, em favor dos brilhos e confortos do progresso, próprios dos modos de ser e viver proposto. A normalidade negocial fez-se o viger de um processo de morte intencionada do modo antigo de viver, desnaturando tudo o que não afirmasse a sua natureza autotélica – e assim, foi esfiapando, até desmanchar, a antiga urdidura sertaneja, que um dia pareceu existir desde sempre, e sem fim...
A normalidade negocial se impôs, varrendo das relações a palavra-dada, o repartir o que não sobejava: as carnes da leitoa abatida, o mangulão e a peta, de gostos inigualáveis, feitos com as alegrias das tardes de sábado; e de modo tão mesquinho que, faltando o açúcar para o café, ninguém se sentiu mais à vontade para mandar um menino pegar emprestado com o vizinho: a abundância mingou e o vizinho se tornou um estranho.
Vida e Negócio se confluíram, amesquinhando o ser, reduzindo-o à tristeza de se saber só, e ter que ter alguma mercadoria para ser, no cotidiano de compras-e-vendas dessa normalidade; que lhes proibiu a alegria, o prazer, o gozo, nos seus modos cotidianos de ser, exceto os do ápice do ato sexual em si – pois, deste, a continuidade decorre...
*Elismar Bezerra Arruda é professor na rede pública de ensino
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