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Opinião Quinta-feira, 18 de Julho de 2024, 06:46 - A | A

Quinta-feira, 18 de Julho de 2024, 06h:46 - A | A

JOÃO ELOY

Experiência na Floresta Amazônica

João Eloy

Corria o final dos anos 70.

Eu estava desempregado, em minha própria terra natal. Havia sido demitido do meu emprego no Hospital Santo Antônio e também do Posto de saúde local, contratado que era pela FUSMAT (Fundação de Saúde de Mato Grosso), ambos os cargos exercidos em Chapada.

A pedido de políticos locais mal intencionados, que pediram minha cabeça ao secretário de saúde do Estado, que era irmão do governador à época, fui despejado da casa onde morava, contígua ao Hospital, onde vivia com minha família, quando de minha contratação pelo saudoso frei Osvaldo, que desejava minha colaboração para atender os desassistidos do município, como costumava dizer e fazer o santo padre.

Por pura perseguição política fui, inclusive, ameaçado de morte com uma carta anônima, a qual ainda tenho em meu poder: ou eu deixava a Chapada com minha família ou era um homem morto.

Acreditando na proteção de Deus e de meus santos e amparado por vários amigos corajosos e destemidos, permaneci no meu torrão natal, junto ao meu povo. Afinal, fora para isso que me formara médico: cuidar de meu povo, aliviando seu sofrimento e cumprindo, com nobreza e convicção, minha missão.

Pois bem, lá no sul do país, uma enchente tenebrosa alagou várias cidades, deixando milhares de pessoas desabrigadas. As águas poderosas devoraram casas, igrejas, mercados e fazendas, matando criações e expulsando os moradores e suas famílias numerosas que, de repente, ficaram sem teto.

Na década de 70 os militares haviam aberto a Rodovia Transamazônica, que cortava o país, atravessando os Estados de Mato Grosso e do Pará e desejavam povoar a região, que se dizia na época, já não mais pertencer ao Brasil.

Foi então que o comandante do Nono Batalhão de Engenharia Civil (Nono BEC) em Cuiabá, chegou até mim e me fez uma proposta de trabalho para atender os sulistas que para lá haviam se mudado, fugindo das enchentes em seus locais de origem. Eles foram trazidos para a selva amazônica para trabalharem no campo, criando no município de Chapada dos Guimarães (que à época era o maior do mundo em extensão geográfica) os distritos de Sinop, Colíder, Terra Nova, Paranatinga e Brasilândia.

Eu atenderia como médico, no assentamento de Terra Nova, próximo ao distrito de Colíder, onde a malária era endêmica e ceifava muitas vidas.
Não tive escolha, com família para sustentar (esposa e duas filhas pequenas, uma recém-nascida) e desempregado.

De quinze em quinze dias um avião Cesna monomotor pousava em Chapada e lá ia eu com destino à perigosa missão. A aeronave aterrissava no meio da estrada, cercada de mata fechada por todos os lados. Em seguida éramos transportados por caminhonetes traçadas, equipadas com guinchos e correntes, para enfrentar os grandes atoleiros, a mercê de rajadas de raios e trovões, características do clima tropical da região, quente e úmido. O calor era muitas vezes, insuportável, sem o mínimo conforto de uma simples ventilação.

Sentia-se no ar uma vertente de medo e incertezas. A todo instante se ouvia os gritos dos pássaros e rugidos dos animais ferozes da selva: onças, lobos, bugios. Os raios e relâmpagos, por vezes, caíam bem perto do alojamento onde ficávamos e éramos aconselhados a permanecermos dentro dos veículos. Algumas árvores, sob o impacto dos raios, caíam e impediam nossa viagem, mas logo eram cortadas por possantes motosserras.

Inúmeras vezes atolamos na lama e fomos rebocados por enormes tratores de esteira, até que chegávamos ao acampamento, composto por uma imensa rua enlameada, ladeada por galpões de tábua cobertos de lona e redes armadas de fora a fora, onde dormíamos à noite e onde acomodávamos os pacientes mais graves. Do local onde ficávamos, dava para perceber os tremores febris dos doentes acometidos da terrível malária. Milagrosamente, nunca fui mordido pelos mosquitos plasmódios (vivax e falciparum), causadores da doença.

Cada um dos membros da equipe recebia um par de botas que chegava até o joelho, para evitar mordidas de animais peçonhentos, muito comuns na região.
Já ao entardecer, o motor a diesel era ligado, com o objetivo de manter as luzes acesas.

Nessa ocasião o coronel comandante nos reunia no refeitório e nos alertava sobre os riscos que corríamos ali. Dizia que a natureza era selvagem e dela nos defenderíamos com armas às vezes, fatais.

Além da malária, causada pelos mosquitos, ainda precisávamos nos preocupar com cobras, marimbondos, escorpiões, aranhas e feras como as onças, das quais observávamos as pegadas em todos os lugares ao nosso redor.

Éramos também orientados sobre os locais e horários de usarmos os chuveiros ao ar livre e buracos no chão, onde fazíamos nossas necessidades. Sempre atentos para não sermos surpreendidos pelos animais selvagens, já que ali estávamos ocupando seus espaços.

Todos tínhamos horários rígidos para “bater o ponto” no início e no final do expediente.

Já no meu primeiro dia de trabalho fui apresentado à equipe de enfermagem e conheci uma situação que seria o meu maior desafio: sem a ajuda de laboratórios para diagnóstico, Raios X, ultrassom, etc., e contando apenas com aguçado olho clínico, consegui tratar e curar trabalhadores do projeto de colonização por três meses, de setembro a dezembro de 1978, durante a força das águas.

Eu permanecia em Terra Nova por 15 dias, então retornava de avião à Chapada para dar assistência à família e cuidar de vários assuntos. Nessas ocasiões ficava hospedado num quarto na casa de minha mãe, onde nos acomodamos quando da minha demissão injusta do Hospital Santo Antônio.

Até que no final do ano, os integrantes do Projeto Rondon assumiram o atendimento na região dos assentamentos e fui dispensado daquela atividade pioneira, corajosa e heroica, que marcou de modo indelével minha experiência profissional.

Senti-me como o Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, desbravando nossos sertões selvagens, em sua missão de instalar linhas telegráficas entre Mato Grosso e Goiás, no início do século XX.

João Eloy é chapadense, médico, professor, escritor, compositor, músico, apresentador do Programa Varanda Pantaneira e articulista do Alô Chapada.

 

O Alô Chapada não se responsabiliza pelas opiniões emitidas neste espaço, que é de livre manifestação

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Jonas Corrêa da Costa 18/07/2024

Grande João Eloi. Amigo e colega médico. Bela história e que eu não sabia. Grande abraço.

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NEI MOREIRA DA SILVA 18/07/2024

Parabéns ao grande colega que além do seu trabalho nos brindava com sua arte.

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2 comentários

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