Tem gente que se refaz tanto, que a normalidade do viver se manifesta como um reverso de si mesmo, dificultando saber quem é que passa e segue rebuliçando o tempo; sem se deixar ver e identificar por cacoetes dos demais de igual origem e condição. Mesmo sabendo que nasceu de família bem situada no mundo das posses e riquezas, e, depois, mais riquezas ajuntou, por si mesma, nos negócios, e por casamento com gente mais afortunada ainda – ainda assim, não tem no modo de ser o rebrilhar arrogante do ouro que tem. Vive numa simplicidade tal, que, quase parece ser o que não é, de jeito que a riqueza se amolda nela submetida ao jeito de quase pobreza; e vive assim, com sua serenidade exposta na aparência, mas flutuando insone sobre carnes e nervos revoltos – que não se acalmam vendo a agonia dos que não têm o sossego de se sentar à boca-da-noite na calçada da casa e, ali, matando uma ou outra muriçoca andeja, poder ficar a conversar, a olhar a lua crescente ou cheia, ver lá no Céu límpido de abril os satélites vagueando apressados, lembrar causos e histórias – até garrar num sono gozoso, sentado na cadeira de espaldar longo...
Tem gente que vive como se morresse sob o tormento de uma falta, que está e não está em si, que não precisa direito, mas busca realiza-la na realidade que a circunda e oprime; e se esforça, na esperança de vê-la faltar pelo sobejar do que faltava na vida do que se remoía de tantas precisões insatisfeitas. Tem gente que sente a dor do outro doer em si, e de um jeito que o egoísmo deletério odeia saber, e pragueja-a – porque que é assim, belíssima, a sua negação...
Dona Constança Luz (invento-lhe um nome, perdoai) já era senhora tida por idosa, quando a conheci, assim, de reparar-lhe os jeitos. É que, naquele então, o peso da vida feita à mão corroía as forças do corpo, a vivacidade da pele e do olhar, vergando tudo sob o cansaço de uma velhice ainda na pouca idade, antes dos cinquenta. Ali, a expectativa de vida não ia além dos sessenta anos; quando, não raramente, uma mulher aos trinta anos era mãe exausta, de uma dezena de filhos, imprescindíveis para o trabalho na roça com o pai: a mulher era instrumento fundamental da produção, pelo fornecimento da mão de obra necessária. A mulher-mãe olhava os filhos crescendo, vendo-os plenificados da juventude que já lhe abandonara; porque os filhos são a totalidade-mãe, repartida em partes iguais e entregues ao mundo ruim e perverso dos negócios...
Cada ano de vida daquela gente se arrastava carregado de necessidades, que só pelo trabalho manual, no sol-a-sol, eram atendidas, um pouco; de modo que, “quage iguarmente, todo mundo tem, cada uma, suas precisão...”, dizia Mamede Gaiêro. De fato, mesmo os tidos como ricos, viviam com confortos inferiores ao que um trabalhador mediano tem hoje; não é que a vida esteja uma maravilha, “mas, dispiorou um pouco!”, diria o Mamede. Era um tempo em que, para as crianças, ninguém sabia mais qualquer coisa no mundo, que as suas Mães; nem ninguém tinha mais força e capacidade para fazer qualquer coisa com as mãos, que seu Pai – e mentir, não era fake News: era mentira mesmo, pecado, castigado rigorosamente, porque Família nenhuma queria ter um mentiroso em casa...
Constança Luz era conhecida desde suas origens, num ambiente em que, graças às abastanças da família, não havia necessidade de coisa material; essa fortuna é que lhe possibilitou ver, conhecer, outros mundos, onde vicejavam diferentes tempos e modos de ser e aprender: lá viveu vivências inimaginadas no Sertão, ainda muito novinha, mocinha, em idade para a Escola Normal. Agora, Constança passava na rua, parecendo levar sobre os ombros mais anos de vida que todos os que tinha vivido; porque o saber pesa mais, quando a ignorância é que manda. O olhar inquiridor e manso dela manifestava as profundezas e os refinamentos daquelas aprendizagens, afigurando aos conterrâneos o desconcerto de estar bem além dos tempos, limites e singelezas do lugar; dum jeito que, o que sabia e manifestava naturalmente no falar, fazia as coisas dali e de além, estudadas, evidenciarem-se diferentes, robustecidas por significâncias que afiguravam-na ser de antes do tempo em que se sabia ter nascido; como se anterior aos genitores e irmãos mais velhos, que a olhavam de esguelha, às vezes.
Assim, encarnava certa transcendentalidade, incrustada no tempo vincado nas rugas precoces da face, a revelarem os esforços da mente para enxergar e recolher os vestígios cada vez mais frágeis do modo de ser da gente antiga dali; então, vivia de revolver a derme da rusticidade restante com jeito e angústia, querendo que ressonasse o que amava, e estava fora de tempo...
Falava bem, atenciosa, mas tinha um pouco do silêncio desconcertante de quem assunta muito para dizer coisa pouca, aprofundada: jeito de quem estudou em Colégio de Freiras, com sua ambiência especialíssima para o polimento da alma feminina, respeito religioso ao corpo-templo e às coisas-chãs do cotidiano, que transforma a Casa em lugar de aconchego e bendições. Olhava-a com admiração, perguntando-me quando e porque havia começado chamar minha mãe e outras mulheres de idade igual, de “minha filha”. Talvez fosse só um dos cacoetes do Sertão que lhe encrustara, ou da necessidade sentida de se afirmar no outro pela intimidade de benquerenças ou pela autoridade do tempo vivido, dispondo-se em simplicidades benfazejas para o caso das muitas precisões; porque só quem viveu o Sertão sabe o que é atravessar a noite insone, e amanhecer o dia sob o gemer de um filho ou marido ou mãe, padecendo enfermidade que não se conhecia origem, nem cura...
No tempo em que morou na Cidade, Constança aprendeu coisas que o Sertão não sabia – embora as tivesse latentes em si, sem a clareza e o polimento de conhecimento pesquisado. Gostava de se embrenhar nos livros, movida pelos seus desassossegos de querer ver as coisas todas pelo que escondiam; e, assim, com o esforço para ir às profundidades de tudo, passou a entender o viver doído dos debaixo pelas consequências do ter minguado, regrado, negado, imposto pelo muito-ter dos de cima. Foi quando, vendo-os subsumidos no interesse sem fim dos negócios, irmanou-se às suas dores sem fim, desimportando-se das próprias riquezas – não pra chorar juntos, mas para aliviar o pranto nas tentativas de invenção de outro mundo. A Escola, com seus muitos livros e mestres e orientadoras e o tempo dirigido pela disciplina de internato, ensinou-lhe assim; quando a mente, terreno fértil para plantios, abriu-se para as sementes no tempo certo para a germinação: e brotaram e se desenvolveram o gosto e a finura para as Artes, para a Literatura, dando-lhe visão para enxergar com ternura as angústias e o riso-latente, quase inocente, do Sertanejo afogado numa lida que mal lhe rendia a sobrevivência...
Assim lustrou-lhe o ser, a Escola – de modo que se fez leveza em meio à violência cangaceira dos seus. Aí, escreveu sobre coisas e situações sertanejamente conformadas, disse, discursou, querendo esclarecer. A Ditadura Miliar viu tudo com o ódio que lhe era próprio: prendeu-a para silencia-la. Voltou pro seu Sertão, e nunca mais se foi de lá. Ali, artista plástica, cuja obra sem público pouco dizia ao primarismo dos olhares ignaros, que não lhe sabiam as significâncias além do motivo mais aparente, pintado nas telas – fez-se plateia de si mesma, a contemplar-se na própria obra, devorando-se, até quase desaparecer. Deu-me uma tela, num tempo de desassossegados meus; deu-me como se me pedisse para tê-la, guarda-la, para entende-la depois: perdeu-se...
Saber que uma coisa é e não é, sem deixar de ser o que aparenta, foi conquista importante para a humanização do mundo; pois, vez ou outra, algo se manifesta além do entendimento vigente, e tudo vira pergunta. O que se avulta como o certo, então, é o cultivo da dúvida; de modo que o amparo da presença ativa do outro, por suas diferenças e singularidades construídas no mesmo conjunto diverso em que todos se fazem, afigura ser o modo mais segura para seguir sendo. É que, observado bem, talvez seja o que Du Carmo dizia para Natural, o mais perto do que seja o certo: “Olhe as qualidade, minino, das pessoas que a gente conhece de ver: cada um tem um pouco de bom e de ruim, uns sabe mais, outro é mais bruto que argola de laço, uns cuida dos outros, outro até mata por bestêra, uns alegre outros triste – e tudo num são fii de Deus? Sim, são; mas Deus num fais ninguém dum ou doto jeito, não: cada um é o esforço de si... né, não?!”
Constança se candidatou à Prefeitura do lugar, anos de 1970: fez comício, discursos bonitos, fez e cantou músicas, mas não se elegeu. Era muito Mulher para ser chefe de todo mundo ali, conformados que estavam no modo patriarcal de ser; cuidou sem usura da fortuna que tinha com um marido sisudo, de modos germânicos, que olhava tudo de cima, e não apenas pelo seu tamanho: gado, casas, fazendas, carros. Tudo meio sem serventia: porque o único filho morrera em acidente de tiro, ainda novinho; antes do pai, morto de doença, depois. Fez-se só, entristeceu o olhar, lerdos os gestos, encheu de silêncios a boca e apurou o ouvido pra as coisas do passado, sem dizê-las. Vi poucas vezes ela rir – e tinha riso bom, fácil, que embelezava o rosto com vincos joviais: parecia carregar tristeza pesada demais, para rir mais. Com o tempo, passou a não manifestar mais o muito que aprendeu, e sabia ser necessário ao lugar, à gente do Sertão, que nunca a entendeu, nem quis tê-la com poder de mando: ficou sendo semelhante a um monumento cheio de importâncias em si, admirado à distância por alguns, mas sem serventia ativa para orientar ou reorientar o viver local. Envelhecia a olhos vistos, vendo a ignorância governar o cotidiano, e se entristecia...
Em uma das últimas vezes que a vi, Constança caminhava passos curtos, cada vez demorando mais, para as mesmas distâncias caminhadas; fiquei a admira-la: passava na rua de casa, andando caminhar-comum, como o andar comum dos demais-comuns, como se tudo o que lhe singularizava, fosse nada. Nem parecia saber tanto, conhecer a rusticidade e a beleza sutilíssimas de seguir com uma Comitiva de boiadeiros, ainda menina, por semanas sem fim, no tempo medido pelo passo vagaroso do gado; quando os primeiros, liderados pelo pai, chegaram no lugar. Tem gente grandiosa assim, de tamanho imenso aconchegada nas suas simplicidades, gente que a humanidade precisava tê-las nas mais destacadas Escolas, a nos dizer sobre as ciências sertanejamente interpretadas. Tem gente que sabe e sente demais do Mundo, para ficar em silêncio e depois morrer sem que o Mundo dela soubesse...
Prof. Dr. Elismar Bezerra Arruda é professor na rede pública de ensino
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